Política

O Escola Sem Partido não é anticomunista. É anticapitalista

Vamos instaurar uma versão brasileira do fundamentalismo político e religioso?

Mordaça é coisa de fundamentalista
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Um novo vídeo do presidente eleito Jair Bolsonaro vazou na internet. Na gravação, cuja data é impossível precisar, ele acusa e nomina 12 professores da Fundação João Pinheiro por doutrinação “comunista”.

Na véspera, uma recém-eleita deputada estadual do PSL de Santa Catarina, Caroline Campagnolo, decidiu estimular alunos de todo o Brasil a denunciar supostas doutrinações ideológicas de professores na sala de aula.

A campanha de Bolsonaro também entrou com processo contra a “propaganda eleitoral irregular” feita pelo músico Roger Waters, ex-líder do Pink Floyd. O TSE descartou, no entanto, cassar os direitos políticos de Fernando Haddad e Manuela D’Ávila, do PCdoB, pelos “showmícios”.

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Um pouco mais ilustrada foi uma juíza do TRE do Rio de Janeiro que expediu ordem contra a Universidade Federal Fluminense para a retirada da faixa Direito-UFF que denunciava o fascismo a três dias da eleição por parecer propaganda contra Bolsonaro. Ela provavelmente estudou em uma escola que a “doutrinou”, ensinando o significado e as práticas do fascismo.

Torçamos para que Bolsonaro não peça a extradição de alguns dos maiores políticos e intelectuais do Ocidente que assinaram manifesto contra a ameaça autoritária no Brasil. Ou de Bono Vox, que falou horrores de “Bolsonero” no show do U2 em Belfast no domingo da eleição. “Duzentos milhões prestes a ter seu carnaval transformado numa parada militar”, disse Bono.

No dia seguinte, um jornal de Amsterdã publicou nova versão da bandeira brasileira, tendo no centro uma suástica formada por sandálias havaianas. Dezenas de publicações ocidentais se posicionaram contra a ameaça à sociedade aberta representada por Bolsonaro, inclusive a insuspeita The Economist. Pudera, o mito é um mitômano que repete que a “imprensa vendida” distribui fake news contra ele.

Curioso: estas críticas não foram feitas por artistas, intelectuais ou jornais da China ou da Coreia do Norte, da Arábia Saudita ou do Paquistão. São herdeiras diretas da tradição ocidental inaugurada pelo debate político na Atenas antiga e recriada pelo Renascimento e pelo Iluminismo.

Não que não tenha sido preciso passar por algumas fogueiras para sairmos da Idade Média. Giordano Bruno foi queimado em praça pública, mas Galileu Galilei se retratou em tempo.

As Cartas Persas do Barão de Montesquieu foram publicadas anonimamente em 1721. A Enciclopédia de Diderot e d’Alembert foi censurada em 1772. Voltaire exilou-se em Genebra. “Posso não concordar com uma palavra que dizes, mas defendo até a morte o teu direito de dizê-las”, repetia.

Como vários autores mostraram, a troca livre de ideias foi fundamental não só para a recriação da democracia ocidental na época moderna, mas para o desenvolvimento do próprio capitalismo. Aliás, não foi só o planejamento central que determinou a falência do comunismo real, foi a falta de democracia e de escolas livres.

O projeto Escola Sem Partido não é anticomunista, mas antiocidental e até anticapitalista. Com incentivo de Bolsonaro, o projeto de lei prossegue, ameaçador, na pauta do Congresso. Seu objetivo não é promover a livre troca de ideias. É intimidar ou mesmo censurar o debate de conceitos que desenvolvam aquilo que o ex-capitão chamou de “pensamento crítico”, mas que é preferível chamar de debate tolerante e culto entre pensamentos diversos e democráticos.

Talvez valesse uma visita dos defensores do Escola Sem Partido ao Vale do Silício, nos Estados Unidos. Poderiam sair da Universidade da Califórnia, Berkeley, em direção a Stanford, passando pelo Google e o Facebook, por exemplo. Eles ficariam espantados com a diversidade de gêneros, cores, origens e ideologias. Paquistaneses, chineses, indianos, alemães, brasileiros. Homossexuais, heterossexuais, brancos, negros. Hippies, hindus, feministas, radicais e confucianos.

O Escola sem Partido seria um grande passo para nos afastar do Iluminismo Ocidental em direção ao fundamentalismo político e religioso. Corremos o risco de criar uma versão brasileira das madraças, as escolas muçulmanas que repetem dogmas e escondem os debates políticos e científicos dos últimos séculos.

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