Economia

O Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família. É um pastel de vento

O presidente poderia simplesmente elevar a linha de pobreza e reajustar os benefícios. Em vez disso, extinguiu um programa que funciona bem

(FOTO: Sérgio Amaral/MDS)
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O inciso II do artigo 41 da Medida Provisória nº 1.061, que criou o Auxílio Brasil, é explícito: o Bolsa Família deixará de existir em 7 de novembro de 2021. Bolsonaro extinguiu, sem qualquer embasamento técnico, o maior e mais bem-sucedido programa de transferência de renda do mundo. E colocou no lugar um arremedo de programa que é o contrário do Bolsa Família.

Viciados na lupa fiscal, analistas de diferentes matizes se dedicaram a debater a consistência entre o novo programa e o famigerado teto dos gastos públicos, repetindo e disseminando o discurso, de interesse do governo Bolsonaro, de que estaria sendo instituído um novo Bolsa Família. Nada mais distante da realidade.

Em seus 18 anos de existência, o Bolsa Família ampliou seu alcance, evoluiu na composição de seus benefícios e na gestão, aprofundou a integração com outros programas. Objeto de centenas de milhares de estudos no Brasil e no exterior, o Bolsa Família foi fiscalizado sob diferentes ângulos e por especialistas de variadas ­áreas. Pulverizou, com resultados consistentes, todos os preconceitos que, sob o manto de questionamentos à sua eficácia, foram lançados contra seus beneficiários.

O Bolsa Família não estimulou a natalidade nem o abandono do trabalho, mas ajudou a reduzir a mortalidade infantil e o déficit de estatura das crianças e a realizar o controle e a detecção precoce de tuberculose e hanseníase. Criou condições para que crianças de famílias pobres pudessem continuar na escola, garantiu acesso a políticas públicas, assegurando direitos e gerando oportunidades para milhões de pessoas. Como mostrou neste mês o jornal que acha que o PT é o diabo, sete em cada dez famílias pioneiras do Bolsa puderam prescindir do benefício.

O Auxílio Brasil destrói as bases que tornaram o Bolsa Família peça central desse processo de redução da pobreza e de inclusão social sem precedentes na história de nosso país.

O inconsistente programa proposto por Bolsonaro prescinde da pactuação e execução em parceria com estados e municípios, centralizando as decisões no governo federal, ente distante do diferenciado cotidiano da população. Troca o Cadastro Único, instrumento fundamental para o Estado conhecer as carências das pessoas inscritas e integrar programas para atendê-las, por um aplicativo ­impessoal, cujo uso pode representar uma barreira intransponível para parte dos beneficiários. Desqualifica o processo humanizado de abordagem e acolhimento garantido no Sistema Único de Assistência Social. Propõe nove diferentes tipos de benefícios, pulverizando a ação integrada que caracterizou o Bolsa e tornando complexa e mais onerosa a implementação do programa.

Por não ter projeto exceto sua permanência no poder, o (des)governo lança os pobres em um ambiente de mais incerteza, que só amplia o caos social

Além dessas mudanças disruptivas na operacionalização do programa, o Auxílio Brasil contrapõe-se ao Bolsa Família também em relação aos benefícios. Os nove benefícios distintos segmentam fortemente o público beneficiário e fragilizam um dos eixos centrais do Bolsa, que era a integração de benefícios, para ampliar impacto e simplificar a implementação. Mais importante ainda, os novos benefícios propostos no Auxílio Brasil estão ancorados em uma visão preconceituosa e retrógrada sobre cidadãos que precisam de proteção social. São “prêmios” para aqueles que se esforçam para conseguir emprego, para ter bom desempenho escolar ou nos esportes, justificados, implicitamente, por uma visão da pobreza como resultado de dificuldades individuais.

Enquanto o Bolsa Família estava ancorado em um conjunto de direitos e proteção social ampla, cuja garantia era responsabilidade do Estado, o Auxílio Brasil baseia-se em uma visão de desempenho individual, que, se bem-sucedido, deve ser premiado pelo Estado. Voltamos à visão dos pobres como aqueles que não deram certo por falta de esforço, da meritocracia invertida que, por séculos, reinou no Brasil, desconsiderando os fatores estruturais e coletivos que estão na base das imensas desigualdades e da exclusão de nossa sociedade.

Essa visão preconceituosa e equivocada da pobreza e dos pobres produziu um programa que reduz o enfrentamento da miséria a uma mera questão de transferência de renda e de prêmios ao esforço individual. Cabe insistir: o Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família. O Auxílio Brasil é mais um passo do governo Bolsonaro no desmonte do sistema de proteção social brasileiro. Ele é da mesma estirpe da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, da extinção da política de valorização do salário mínimo, da redução de recursos para a saúde e a educação. Não é apenas uma mudança de nome; é a desconstrução do conceito de responsabilidade coletiva pelo enfrentamento da pobreza.

 

Se tivesse compromisso com o enfrentamento da pobreza, Bolsonaro teria tomado uma atitude há meses, e poderia ter atuado de forma simples e rápida. Bastava elevar a linha de pobreza e reajustar os benefícios do Bolsa Família, o que poderia ter feito com um mero decreto, instrumento legal de iniciativa exclusiva do presidente. Mas nunca foi isto.

O debate em torno da questão dos recursos para pagamento do Auxílio Brasil é conveniente para Bolsonaro. Evita esclarecer que o Auxílio Brasil vai excluir 22 milhões dos 39 milhões de beneficiários que atualmente recebem o Auxílio Emergencial, que ficarão à míngua. Evita mostrar que os novos benefícios do Auxílio Brasil são “pastéis de vento”, pois não serão implementados em 2021 ou em 2022, por incompetência operacional e por limitações legais. Evita explicitar que, por não ter projeto para o País exceto a sua permanência no poder, o (des)governo Bolsonaro extinguiu um programa que funciona muito bem há 18 anos, para lançar os pobres em um ambiente de maior incerteza, que só amplia o caos social que reina no Brasil. Retrocesso, irresponsabilidade, descompromisso – nada novo, apenas Bolsonaro sendo Bolsonaro.

Publicado na edição nº 1181 de CartaCapital, em 28 de outubro de 2021.

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