Cultura

Il Capitano Bolsonaro e mais de mil palhaços (sem graça) no salão

A Commedia dell’Arte, com sua verve popularesca e seu repertório medieval, vem em socorro do Brasil

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Em determinado momento da campanha presidencial dos Estados Unidos em 2016, quando Donald Trump começou a soltar seus demônios, o jornal The New York Times houve por bem alocar nas páginas de “Entretenimento” a tentativa do milionário dono de cassino de se firmar como improvável candidato do Partido Republicano. Parecia uma piada de mau gosto. O Times, um veículo cioso de sua responsabilidade, teve mais tarde (de todo modo, bem mais rápido do que os 50 anos que a imprensa brasileira requer para se penitenciar de suas velhacarias) de refletir se agiu certo ao subestimar a arlequinada que acabou por enfeitiçar a América e contagiar o mundo.

Clown in command, com chances de se reeleger em 2020 na trilha de suas papagaiadas, Trump foi o primeiro a festejar a ascensão ao poder, na Grã-Bretanha, dias atrás, de um clone seu, o primeiro-ministro conservador Boris Johnson, também mamífero da espécie de penugem amarela no cocoruto. Johnson entrou em 10, Downing Street prometendo destrinchar rapidamente, e sozinho, a encrenca que é o Brexit – a novela da saída do Reino Unido. Para cumprir o prometido, teria de ser ou o recordista da autoconfiança narcisista ou um farsante sem escrúpulos. Boris Johnson preenche fácil os dois requisitos.

A política é a práxis humana mais próxima do teatro, na encenação de enredos fictícios que pretendem fazer sentido. Tem a ver com a arte do palco, na medida em que recruta atrizes e atores dispostos a encarnar personagens que não lhes obriga nenhum compromisso com a verdade dos fatos, nem sequer com suas próprias convicções. O político, no geral, é um fingidor; veste a máscara, investe-se de uma persona e vai em frente. O problema é que as Américas, a Europa, o mundo todo decidiu exagerar nas estripulias do picadeiro. Para desgosto dos autênticos palhaços, os saltimbancos de caricatura estão se apossando do poder.

“O mundo está sendo cada vez mais governado por comediantes”, observou o satirista inglês Will Self. “Mas alguém aí está rindo? A relação entre política e comédia nos leva a um lugar sem graça alguma”

Donald Trump. Boris Johnson. Jair Bozo Bolsonaro. Benjamin Bibi Netanyahu. Matteo Salvini, o recém-destituído vice-primeiro-ministro da Itália. Volodymyr Zelenskiy, primeiro-ministro da Ucrânia. Marjan Sarec, da Eslovênia. Jimmy Morales, presidente da Guatemala. Todos com vocação circense, experiência às vezes comprovada no currículo, como é o caso de Morales, ludibriador de púlpito pentecostal. Costumam dizer-se representantes de uma “nova política”, por mais arcaicas que sejam sua atitude e sua lábia, e são ocasionalmente acobertados pela mídia camarada com o rótulo enganoso de “nacionalistas”.

Ao trocarem de tablado e de make-up, os novos jograis do poder revelam sua face verdadeira. “O mundo está sendo governado por comediantes, mas alguém aí está rindo?” – pergunta-se o humorista britânico Will Self. – “A relação dialética entre política e comédia está nos levando a um lugar profundamente sem graça.” Os nossos bufões de gabinete, ao contrário, irritam, insultam, atazanam, mentem, trapaceiam, dissimulam, ludibriam, constrangem. Eles, quando seduzem, é pelo ódio e pelo medo; quando pretendem ser engraçados, correm o risco de rir sozinhos.

O Capitão Spaventa, da Commedia dell’Arte, é tão valente que desafiou para briga a própria sombra

O italiano Beppe Grillo candidatou-se a ser uma exceção, uns 10, 12 anos atrás, arrebanhando auditórios de centenas, milhares de extasiadas criaturas em seus espetáculos que começaram como stand-up peripatético, o comediante andando compulsivamente para lá e para cá sem perder o fôlego, e que desandaram naquela cantilena antidemocrática de que a política tradicional é suja e todos os políticos são imundos. Acabou, por ironia, ingressando na política, ao criar um partido disfarçado em “movimento” para o qual levou suas jeremiadas, mas não seu humor. Compreensivelmente, o Movimento 5 Estrelas oscila entre direita e esquerda. Ingressou agora na nova coligação com o Partido Democrático, em parte herdeiro do antigo Partido Comunista. Beppe Grillo ao menos comete a coerência de não aceitar cargo público.

O Tartufo de Molière é um concentrado de vícios, com destaque para a hipocrisia, a cobiça e a mentira

Al Franken, nos Estados Unidos, não foi tão longe quanto Grillo na quimera de sanitizar a vida na pólis. Produzira em dois ou três livros uma sátira feroz aos usos e costumes do establishment político e financeiro made in USA e, meio de farra, num requinte de desaforo, lançou-se candidato a senador da República no seu estado de Minnesota pelo Partido Democrata. Tinha feito aquecimento no hilariante Saturday Night Live, da NBC. Os eleitores foram às urnas sorrindo e elegeram Al Franken, que se revelou um parlamentar seriíssimo, mas logo cansou da brincadeira. Acossado pelos emburrados adversários “do bem”, renunciou meses antes de concluir os oito anos de mandato.

O Bobo da Corte leva pontapé no traseiro, mas aceita alegremente as humilhações pelo convívio com o poder

Como cada país tem o Al Franken ou Beppe Grillo que merece, o Brasil tratou de revelar ao mundo político um histrião certificado, o cidadão Francisco Everardo Oliveira Silva, de nome artístico Tiririca. Já que a coisa mais parecida com o Congresso Nacional é o auditório do SBT, pilotado pelo decano do embuste, Tiririca virou deputado federal com votação estridente. Participou alegremente da palhaçada de 2016 chamada de impeachment, incomodou-se com a concorrência dos colegas parlamentares, fez que desistiu e acabou por desistir de desistir.

Coluche, na França, chegou a se lançar à Presidência, em 1980, mas, como a candidatura suscitou mais ira do que gargalhadas, desistiu. Possivelmente inspirou o já citado Silvio Santos, fantoche do arbítrio, na eleição presidencial de 1989, a primeira após a ditadura da qual ele tanto se aproveitara. A desfaçatez era tamanha que negaram o registro. SS vaticinou, de todo modo, a influência promíscua que a televisão teria no voto. A política no Terceiro Milênio faz mímica dos reality shows da tevê, com suas banalidades irrelevantes e traições sussurradas. Seja como for, cabe lembrar que o saltimbanco que melhor representa a pátria verde-amarela faz seus malabarismos espalhafatosos sob os refletores do futebol.

O Coringa é a encarnação do jogral do mal, mas se acha engraçadíssimo na imitação caricata de Gene Kelly

A Commedia dell’Arte, com sua verve popularesca e seu repertório medieval, vem em socorro do Brasil na ingrata tentativa de entender o pastelão encenado hoje pelas autoridades da República. A chave do enigma trapalhão é também, coincidentemente, um capitão, o Capitano Spavento, ou apenas il Capitano, o qual usa e abusa das lorotas e dos shows de macheza para ocultar sua verdadeira natureza de covarde. O espaventoso fanfarrão vangloria-se para Arlequim [o filho 01?] de seu know-how com as mulheres e chega a fazer uma demonstração prática ao eventual pupilo acerca das artimanhas do amor, dispensando, como alardeia o outro capitão da milícia, os artifícios da mandrágora azul para satisfazer a parceira. Corajoso ao extremo, il Capitano – vai seguindo aí – deparou com um intruso, ao despertar, e de imediato o desafiou para um combate de punhos. Era seu próprio reflexo no espelho. Mas, ao se sentir de fato ameaçado, o brav’uomo reage aos gritinhos em falsete ou então desmaia.

O Capitano Spavento da Barra, ao ser removido para Brasília em consequência de uma pantomina de terror, com figurantes espectrais e cortejo de zumbis do Halloween, recrutou para engordar o engodo um acervo colorido de fanfarrões que Molière teria orgulho em listar em suas peças As Preciosas Ridículas [Les Précieuses Ridicules], O Misântropo [Le Misanthrope] ou O Doente Imaginário [Le Malade Imaginaire]. O vice Mourão, a ministra Damares, o ministro Araújo, o general Heleno, a deputada Hasselmann, a estadual Janaína nem à altura de Molière estão, no máximo seriam figurantes de autos burlescos do pré-Renascimento. Mas o ministro Moro é um perfeito Bobo da Corte, ajaezado em guizos e chocalhos, e seu cúmplice Dallagnol nasceu para encarnar o Tartufo, campeão da patifaria e da hipocrisia.

A televisão adquiriu tamanha influência que a política copia o modelo do reality show, com suas traições torpes, amores dissimulados e vulgaridade premiada

O problema que se coloca é definir no casting ministerial quem seria o Coringa, já que ali todo mundo está credenciado a ser o bufão do mal supremo. Aliás, os anos de formação de The Jocker, até ele se firma como o inimigo impenitente do Batman e de Gotham City, acabam de premiar o diretor Todd Phillips com o Leão de Ouro em Veneza. Apesar da concorrência, o ministro Weintraub – aquele que tenta fazer graçolas com uma trovejante imitação de Gene Kelly – é quem tem o melhor arsenal de perversidades digno de um Coringa. “Sou só eu ou é o mundo todo lá fora que ficou mais louco?”, pergunta o anti-herói no começo do filme. Mais louco e, apesar do número de palhaços, sem humor nenhum.

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