Política

Em Paris, artistas brasileiros e franceses leem cartas para Lula

O espetáculo contou um ano de história do Brasil a partir dos testemunhos e reflexões dos autores das mensagens ao ex-presidente

Foto: Wanezza Soares (Foto: Wanezza Soares)
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Trinta e oito artistas, políticos e intelectuais franceses e brasileiros se encontraram no palco do teatro Monfort, na noite de terça-feira 25 em Paris, para a leitura de 80 cartas enviadas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva entre as 22.000 mil que ele recebeu desde que foi preso, em 7 de abril de 2018.

O evento foi uma iniciativa da historiadora francesa Maud Chirio, fundadora da Rede Europeia pela Democracia no Brasil (RED.Br), que também criou um arquivo digital com os textos. A dramaturgia foi assinada pelo autor e diretor francês Thomas Quillardet, em parceria com o bailarino e coreógrafo brasileiro Calixto Neto.

O teatro do 15° distrito de Paris, com capacidade para 450 pessoas, ficou lotado para ouvir o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, as atrizes Maria de Medeiros e Anna Mouglalis, a jornalista Audrey Pulvar, o ex-deputado Jean Wyllys e a filósofa Marcia Tiburi, entre outras personalidades que se revezarem na leitura das cartas, às vezes intercaladas por vídeos gravados no Brasil com artistas que não puderam estar presentes, como Antonio e Camila Pitanga, Marieta Severo e Renata Sorrah.

Houve ainda uma homenagem à ex-vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, e uma esplêndida interpretação em francês do samba-enredo da Mangueira “Histórias pra Ninar Gente Grande”, vencedor do Carnaval 2019. A cantora Aurélie Tyszblat, da dupla francesa Aurélie e Veroca, cantou “à capella”, emocionando a plateia.

O ex-deputado federal Jean Wyllys leu a última carta, em português, já falando do exílio, “um não-lugar” […] mas “ainda melhor do que a prisão”. “Quero te ver livre, meu guerreiro”, concluiu o ex-deputado, levando a plateia a encerrar a noite de pé com uma ovação de aplausos e pedidos de “Lula Livre”.

Cartas ganham arquivo digital

O espetáculo contou um ano de história do Brasil a partir dos testemunhos e reflexões dos autores das mensagens ao ex-presidente. O evento foi o primeiro de uma série de manifestações artísticas que Maud Chirio pretende montar, a partir do arquivo digital das cartas que ela se ofereceu para organizar, em parceria com o Instituto Lula, e com a ajuda de uma equipe de historiadores sob sua coordenação. Para conservar as cartas e valorizar esse material precioso, o grupo de especialistas traduz os textos para outros idiomas – francês, inglês e espanhol –, e mantém o conteúdo disponível no site linhasdeluta.org.

“Nós percebemos que havia grande importância em mostrar essas cartas, fazer com que elas fossem conhecidas no Brasil e no exterior, uma vez que a fala que está nessas mensagens, a trajetória de vida, a leitura por parte do povo – de gente de origem muito humilde – sobre a situação política no Brasil, é uma fala ‘invisível’ na mídia e no discurso público”, destaca a especialista em política do Brasil contemporâneo. “O evento criado pelo diretor de teatro Thomas Quilleret, em Paris, é a primeira obra de arte de uma série que tem o objetivo de dar visibilidade aos ‘invisíveis’”, explica Maud Chirio.

Thomas Quillardet escolheu apresentar as cartas da maneira mais simples possível, sem acrescentar qualquer interpretação por parte dos leitores, para permanecer fiel aos milhares de brasileiros e brasileiras que se identificam com o ex-presidente e se dirigem a ele como se fosse alguém da família.

“Nós nos sentimos como porta-vozes dessas pessoas. Nas cartas, elas contam suas trajetórias, seus percursos, como a política mudou a vida delas, demonstram gratidão aos programas dos governos de Lula e Dilma, apontam erros e também fazem críticas construtivas para ajudar a esquerda a se reinventar depois de tudo o que aconteceu recentemente no Brasil”, resume o dramaturgo.

Ameaça ultrapassa fronteiras do Brasil

Para a atriz Maria de Medeiros, que leu mais de uma carta em cena, “é muito importante mostrar que a injustiça que se está vivendo no Brasil com a prisão do presidente Lula é algo que ultrapassa muito o Brasil”.

“É uma questão mundial que mobiliza todos que se preocupam com os valores democráticos e a imparcialidade da Justiça, um dos fundamentos dos direitos humanos”, afirmou a atriz e cineasta portuguesa. “Há uma manipulação mundial que faz uma lavagem no cérebro das pessoas e isso me parece um dos grandes perigos atuais”, enfatizou.

Maria de Medeiros contou ter ficado comovida ao ler as cartas que “o povo brasileiro escreve para agradecer por tudo o que os anos Lula e Dilma representaram no resgate de milhares de pessoas da miséria”. Mas ela afirma não entender a classe média que quer esquecer tudo isso. “A impressão que se tem, quando se vê o que está acontecendo no Brasil, é de uma ingratidão muito grande, a classe média querendo ignorar os fatos”, lamentou.

A apresentadora de TV francesa Audrey Pulvar explicou que é importante que Lula saiba que pensam nele em Paris, que outras pessoas, além dos brasileiros que lhe enviam mensagens, fazem questão de homenageá-lo, manifestando apoio moral, amizade e afeto.

Jornalista nascida na Martinica, negra e militante feminista, Audrey Pulvar cresceu em uma família de esquerda, segundo ela, “comprometida com o combate às ditaduras latino-americanas”. “O conteúdo dessas cartas lembra os combates do meu pai, dos meus avós, o que eu conheci na infância, por isso foi tão emocionante estar aqui esta noite”, revelou. “Sei que a situação das mulheres e dos jovens negros é particularmente difícil hoje no Brasil, também dos artistas, por isso estou aqui”, concluiu.

Perigo do obscurantismo

“Estamos todos ameaçados pelo que está acontecendo atualmente no Brasil, esse mergulho no obscurantismo”, disse a atriz de cinema e teatro Anna Mouglalis. Ela leu a carta de uma mulher negra, filha de pai alcoólatra, cujo avô paterno era garimpeiro, o avô materno agricultor, a mãe e as avós donas de histórias tão tristes, “que é melhor nem falar”.

“É uma carta fantástica que mostra a utopia maravilhosa que Lula e seu partido foram capazes de colocar em prática no Brasil, que se tornou realidade”, sublinhou. A utopia, no caso, foi o acesso à universidade. Na opinião da artista francesa, “os políticos não são todos iguais e os grandes projetos políticos devem ser apoiados, da mesma forma que é preciso se rebelar contra o populismo sórdido”. Como outros colegas do meio artístico e intelectual na França, Anna Mouglalis tem a impressão que os europeus sofrem atualmente de excesso de confiança em relação aos direitos adquiridos e à estabilidade das “velhas democracias”, que ela considera profundamente ameaçadas. “Estamos à beira de um abismo”, advertiu. Lembrando que a história se repete com frequência, é importante manter-se vivo e indignado, aconselhou.

Ao final de duas horas e meia de espetáculo, Chico Buarque, que leu a carta de um homem nordestino e “filho da pobreza” como Lula, deixou a sala sem falar com a imprensa, dizendo apenas “foi lindo, muito lindo”.

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