Justiça

Em nome da lei

À frente do TSE, Alexandre de Moraes promete punir a disseminação de fake news e garantir eleições limpas

Imagem: Arquivo/STF e Marcos Corrêa/PR
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O corintiano Alexandre de Moraes toma posse no comando do Tribunal Superior Eleitoral na terça-feira 16 e chamou o palmeirense Jair Bolsonaro para a ocasião. O convite foi entregue um dia após o time do juiz ser eliminado da Copa Libertadores, causa de presumível mau humor por parte dele, um torcedor fanático. O Palmeiras, ao contrário, avançou no torneio na noite do tête-à-tête de Moraes com o capitão. O presidente deu ao visitante uma camisa do Corinthians e disse-lhe que irá à posse. Gestos de conveniente hipocrisia. Moraes é aquele que Bolsonaro tachou de “canalha” no 7 de Setembro do ano passado. À frente do TSE, é promessa de azedume para o mandatário, daquele tipo que invade a alma do torcedor de um clube eliminado. “Ninguém aqui é megalomaníaco de achar que as milícias digitais não vão atuar (na eleição), mas agora nós sabemos como elas atuam e como combatê-las. E o combate vai ser firme”, comentou o ministro em 11 de julho, diante de cem alunos de um curso de pós-graduação da Escola Judiciária Eleitoral Paulista.

Os milicianos da web disseminam mentiras a serviço de Bolsonaro, e Moraes sabe melhor que ninguém. No Supremo Tribunal Federal, conduz há mais de três anos um inquérito, o 4781, aberto por conta própria pelo STF para investigar as ameaças das milícias à Corte. O ministro é ainda o relator de outro inquérito no Supremo, o 4874, instaurado há um ano para averiguar se esses milicianos constituiriam uma quadrilha decidida a arrasar as instituições brasileiras. Nos dois casos, bolsonaristas estão na mira. Dessas duas investigações nasceu, a pedido do TSE, um inquérito específico contra o presidente, o 4878, em razão de o capitão ter vazado, em uma transmissão em vídeo na internet, em julho do ano passado, um relatório sigiloso da Polícia Federal sobre um ataque hacker ao Tribunal Eleitoral em 2018. Na papelada da PF que um mês depois da transmissão presidencial levaria o TSE a proibir as plataformas (Twitter, YouTube etc.) de repassar dinheiro a quem lucra com fake news, Bolsonaro foi descrito como “figura central” da engrenagem das mentiras. Para Moraes, “fake news não são notícias falsas, são notícias fraudulentas, com a finalidade de desestruturar o Estado Democrático de Direito”. Expôs essa visão no VIII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, em junho, em Curitiba. Na Escola Judiciária Eleitoral Paulista, afirmou que “o eleitor não sabe distinguir, ou tem dificuldade em distinguir, se aquilo é uma notícia real­ ou falsa, se veio da mídia séria ou não”. Por isso, crê o juiz, a Justiça Eleitoral será fundamental para garantir que os brasileiros votem neste ano sem ser manipulados. O início oficial da campanha será no dia da posse de Moraes.

O MINISTRO DO STF É ODIADO PELAS TROPAS BOLSONARISTAS, MAS ATÉ AGORA NÃO SE DEIXOU INTIMIDAR PELAS AMEAÇAS

A propaganda na tevê começa em 26 de agosto e Bolsonaro terá cerca de 40 segundos a menos que Lula, outro motivo para o capitão recorrer às milícias digitais. As redes sociais, pensa Moraes, foram “capturadas” pela extrema-direita e prestam-se a disseminar “ódio”. Um ­modus operandi observado, de acordo com o magistrado, na vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, e em nações governadas por radicais de igual cepa, como Hungria e Polônia.

Para combater essas milícias com rigor, Moraes tem duas balizas definidas pelo TSE no ano passado. Uma foi a cassação de um deputado estadual. Fernando Francischini, delegado da PF, foi recordista de votos no Paraná, 427 mil, ao eleger-se em 2018 pelo então partido de Bolsonaro, o extinto PSL. No dia da votação, disse em um vídeo no Facebook que as urnas eletrônicas estavam fraudadas. O Ministério Público Eleitoral pediu sua cassação por divulgação de “notícias falsas acerca da lisura da eleição e promoção pessoal”, proibida no dia do pleito. A Justiça Eleitoral paranaense absolveu-o, e a promotoria recorreu. O TSE julgou o caso em outubro de 2021. Por 6 a 1, o acusado perdeu o mandato e o direito de concorrer por oito anos. A Corte entendeu que houve uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político e econômico. São hipóteses de cassação previstas na Lei de Inelegibilidade, de 1990. Francischini tentou em vão anular a decisão no Supremo.

O julgamento do delegado no TSE foi um aviso prévio sobre como o tribunal lidará com político propagador de fake news neste ano. Naquele mesmo dia, a Corte analisou uma ação do PT que pedia para anular a vitória de Bolsonaro, em razão de mentiras espalhadas contra Fernando Haddad há quatro anos. O capitão sobreviveu, pois os juí­zes entenderam não haver provas contra ele. O processo serviu, porém, para o TSE anunciar uma segunda baliza: as redes sociais (WhatsApp, Twitter, YouTube, Facebook e Telegram) seriam encaradas a partir dali como meios de comunicação e, como tais, sujeitas a controles que impeçam um candidato de as explorar contra outro. Moraes é contra uma “política judiciária do avestruz”, que ignore que a venda de publicidade é uma das explicações do lucro de 70 bilhões de dólares do Google em 2021. Na ­absolvição da chapa de Bolsonaro, o juiz comentou: “Se houver repetição do que foi feito em 2018 (fake news), o registro será cassado e as ­pessoas que assim fizerem irão para a cadeia”.

Fachin foi leniente com as ameaças às eleições. O coronel Sant’Anna, indicado pelo Exército para uma comissão do TSE, é um disseminador de fake news – Imagem: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo e Antonio Augusto/TSE

Por achar que o “grande desafio” do tribunal é coibir as milícias digitais, Moraes deve nomear um policial para ser seu assessor de Enfrentamento à Desinformação. O cargo foi criado, em março, por Edson Fachin, atual presidente da Corte, e é ocupado por um servidor da Justiça Eleitoral, Frederico Alvim, de perfil mais teórico. A propósito, termina agora em agosto a licença-maternidade da delegada da PF Denisse Ribeiro, principal investigadora dos inquéritos contra as milícias digitais e a organização criminosa que elas representam. Foi Ribeiro quem descreveu Bolsonaro como “figura central” da engrenagem. Graças às suas descobertas, ­Moraes está convencido de que a quadrilha se divide em quatro núcleos: o produtor de mentiras (gabinete do ódio), o propagador (robôs na web), o político (bolsonaristas que botam o assunto na mesa após a audiência gerada pelos robôs) e o financeiro (empresários em busca de lucros e poder). Uma turma contra a qual o juiz está inclinado a usar, nos processos do Supremo, a lei da lavagem de dinheiro, a lei da sonegação fiscal e a lei que substituiu aquela da segurança nacional.

A condenação, pelo Supremo, do deputado federal Daniel Silveira, do PL do Rio de Janeiro, a oito anos de cadeia, em abril, nasceu de um desses inquéritos. Bolsonaro, recorde-se, concedeu perdão presidencial ao sentenciado. Também dessas investigações surgiu um pedido de prisão, requerido pela Polícia Federal, em julho, do youtuber mineiro Ivan Rejane Pinto, o Ivan Papo Reto, candidato a vereador em Belo Horizonte por um partido bolsonarista. O youtuber divulgou vídeos nos quais faz ameaças a dirigentes de partidos progressistas e ao Supremo. Ao prendê-lo, a PF capturou um celular e um notebook nos quais identificou grupos de WhatsApp de divulgação da causa terrorista do rapaz, o uso da violência contra adversários. Uma mensagem de Ivan Papo Reto dizia: “Estamos em guerra. E guerra não se vence sem armas”.

SEGUNDO MORAES, O GRANDE DESAFIO DAS ELEIÇÕES DESTE ANO É COIBIR AS MILÍCIAS DIGITAIS QUE CAMPEIAM NAS REDES SOCIAIS

Segundo um advogado familiarizado com os bastidores do TSE, Moraes espera que o policial a ser nomeado como assessor de Enfrentamento à Desinformação colete provas de fake news para abastecer os processos. Em março, o juiz participou de reuniões de Fachin com representantes partidários. Numa delas, conta uma testemunha, disse a quem se queixava de notícias falsas que era preciso ter provas. E sugeriu aos reclamantes que escalassem seus nerds para fazer cópias das mentiras nas redes sociais.

Quando está diante de provas de fake news, Moraes age com rigor. A proibição de ligar o PT ao PCC e ao assassinato de Celso Daniel ilustra a postura linha-dura. Em 1° de julho, o site da revista Veja publicou vídeos de uma delação de 2017 de Marcos Valério, aquele dos “mensalões”, nos quais o publicitário repetia alegações sem provas que faz desde 2012 sobre petistas, a facção criminosa e o homicídio. Dias depois, o deputado Otoni de Paula, do MDB do Rio, aparecia em um canal governista no YouTube, o DR News, a afirmar que o PT estava mancomunado com o PCC na morte. O parlamentar é soldado­ do presidente. Coube a ele ir ao Paraná em nome do ídolo falar com os irmãos do guarda petista morto há um mês por um agente penitenciário bolsonarista. Os advogados de Lula acionaram o TSE contra a difusão de que PT e PCC são aliados. E conseguiram uma liminar de Moraes. “O sensacionalismo e a insensata disseminação de conteúdo inverídico com tamanha magnitude pode vir a comprometer a lisura do processo eleitoral”, escreveu o juiz.

Os advogados apontavam outros dois vídeos forjados descaradamente que mereciam degola nas redes. Um deles usava um discurso de outubro de 2021, no qual Lula dizia que pobre é tratado como “papel higiênico” pelos políticos em época de eleição. O que era uma crítica do ex-presidente, na montagem virou pregação a favor do tratamento. Um dos primeiros a publicar o vídeo forjado foi um segurança presidencial, Max Guilherme Machado de Moura, ex-sargento da PM do Rio. O outro vídeo transforma um discurso de 2017 de Lula sobre jovens e política em uma defesa do nazifascismo. Um de seus disseminadores foi um empresário de Taubaté, no interior paulista, Gilney Gonçalves da Silva. Alexandre de Moraes mandou tirar os dois vídeos do ar e estabeleceu uma multa diária de 10 mil reais aos envolvidos. Para ele, os vídeos “objetivam, de maneira fraudulenta, persuadir o eleitorado”. Mais, “liberdade de expressão”, anotou ele, não é para “agressão”, para “destruição” da democracia e da honra alheia nem para “propagação” de ódio.

O caso do PCC é um exemplo da mudança de postura que haverá no TSE na passagem de Fachin para Moraes. O primeiro é tido em Brasília como cauteloso demais. Teve oportunidades de agir contra mentiras bolsonaristas e nada fez. O PT de Lula e o PDT de Ciro Gomes pediram à Corte que tirasse da web o vídeo da reunião de 18 de julho do presidente com embaixadores estrangeiros, na qual o capitão deixou a mensagem de que será roubado pelos juízes do Tribunal Eleitoral e pelas urnas eletrônicas. A alegação baseava-se naquele relatório policial sobre o ataque hacker de 2018, papelada cujo vazamento a delegada Denisse Ribeiro tinha concluído, no início deste ano, tratar-se de crime. A vice-procuradora-geral Lindôra Araújo quer o arquivamento da conclusão, mas Moraes não aceita. “Não tinha ninguém melhor do que o Alexandre de Moraes para ser presidente do TSE agora. Dentre os 11 ministros do Supremo, é o único que pega o touro pelo chifre”, diz um subprocurador-geral da República aposentado. Um advogado atuante na Corte aposta que Moraes terá muito mais força que Fachin. O juiz, diz essa fonte, sempre tenta fazer valer seu ponto de vista nos julgamentos, ao contrário do antecessor. Daí que o gabinete dele tem sido procurado por todos os interessados em algum processo. O futuro corregedor-geral do TSE, Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, teria dado pistas de que atuará totalmente alinhado a Moraes.

Um observador privilegiado da cúpula do Tribunal Eleitoral diz que Moraes não terá dó de usar a caneta, mas que há certa expectativa na Corte sobre como exatamente será a sua gestão, pois o ministro é “fechado”. “Enigmático” e “esfinge” foram outras definições ouvidas por esta reportagem. Após o assassinato do guarda petista em Foz do Iguaçu, uma comitiva lulista foi ao TSE e pediu a Moraes providências contra a violência política. O ministro, segundo um participante, ouviu calado e, no fim, disse que as “preocupações vão ser levadas em conta”. E só.

UM SUBPROCURADOR DA REPÚBLICA APOSENTADO DEFINE O NOVO PRESIDENTE DO TSE: “É O ÚNICO MINISTRO DO STF QUE PEGA O TOURO PELO CHIFRE”

Apesar do jeitão de “esfinge”, ­Moraes é um linha-dura e deve portar-se dessa maneira à frente da Justiça Eleitoral. Ele entrou no Ministério Público ao se formar em Direito, ou seja, tem perfil inquiridor. Foi também secretário de Justiça e de Segurança Pública em São Paulo, postos em que lapidou o perfil. Para um jurista que chefiou a Corte eleitoral numa eleição presidencial passada, Moraes é “tensionador”. Marco Aurélio Mello, outro ex-ocupante do posto, classifica-o de “xerife”. Ao designar Moraes para conduzir o inquérito das milícias digitais, em 2019, o então presidente do Supremo, José Dias Toffoli, comentou de forma reservada e irônica ter escolhido um “delegado”. Curiosidade: Toffoli e Moraes formaram-se no mesmo ano na Faculdade de Direito da USP, em 1990. A faculdade, na quinta-feira 11, promoveu um ato para divulgar um manifesto pró-Estado de Direito e, indiretamente, anti-Bolsonaro.

Nos últimos dias, especulou-se muito, em Brasília, que outra mudança entre as presidências de Fachin e Moraes se notará na relação com as Forças Armadas. O antecessor de Fachin, Luís Roberto Barroso, botou um cavalo de Troia militar no TSE, ao pedir ao Ministério da Defesa a indicação de um oficial para uma comissão que atestaria a segurança das urnas. O indicado, o general Heber Garcia Portella, chefe da área cibernética do Exército, fez o contrário. Provocou tumulto. Por isso, Fachin fechou o canal com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Fachin é um progressista, tem resistência ideológica aos quartéis. ­Moraes não tem esse tipo de objeção. Além do mais, aproximou-se dos fardados quando era ministro da Justiça do governo Temer, em 2016. Chamou-os para uma atuação conjunta nas fronteiras contra o tráfico de drogas. À época, até participou pessoalmente, ao lado de militares, de apreensão de maconha no Paraguai.

O bolsonarismo mantém o clima golpista do ano passado. Silveira foi um exemplo. A delegada Denisse Ribeiro vai voltar ao trabalho – Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR, PF e Billy Boss/Ag.Câmara

O conservadorismo e a boa relação anterior com os quartéis não significam que Moraes se dobrará aos militares que colaboram para emular o fantasma de um golpe de Bolsonaro. O juiz nasceu em 13 de dezembro de 1968, o mesmo dia do AI-5, o ato mais violento da ditadura, responsável por fechar o Congresso e cassar três ministros do Supremo. Para Moraes, não há dúvida: houve golpe militar em 1964 e houve ditadura. Na sua visão, a Constituição de 1988, concebida para enterrar aquele regime, deu força ao Judiciário para defender a democracia, pois “o Poder Legislativo sozinho não é páreo para controlar os arroubos históricos do Executivo”. E a democracia brasileira, segundo o ministro, encontra nas eleições e nas urnas eletrônicas um de seus pilares. Em um evento do TSE, em 11 de maio, sobre os desafios da Justiça Eleitoral neste ano, cravou: “Todos os juízes devem se sentir absolutamente indignados com esse discurso fraudulento, mentiroso, eu diria criminoso, de tentar desqualificar uma das grandes conquistas do Brasil, que é a lisura nas eleições com as urnas eletrônicas”.

Por tudo isso, Moraes assinou, juntamente com Fachin, na segunda-feira 7, um ofício dirigido ao ministro da Defesa, no qual o TSE informou ter excluído do grupo que fiscalizará as eleições um coronel, Ricardo Sant’Anna, chefe da Divisão de Sistemas de Segurança e Cibernética da Informação do Exército. O motivo? “Perfis por ele mantidos em redes sociais disseminaram informações falsas, a fim de desacreditar o sistema eleitoral brasileiro”, afirma o ofício.

Com Moraes no páreo, não bastará a Bolsonaro atiçar os militares e as milícias bolsonaristas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Em nome da lei”

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