Tathiana Chicarino

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Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP; professora da Fesp-SP; Pesquisadora do Núcleo de Estudo em Arte, Mídia e Política da PUC-SP e do Grupo de Pesquisa "Comunicação e Sociedade do Espetáculo" da Cásper Líbero; e editora da Revista Aurora.

Opinião

#EleNão e o nosso passado, presente e futuro autoritários

Tortura e censura podem ser vistas só como excesso? Talvez por quem cruzou a linha civilizatória que se baseia na defesa da vida e liberdade

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Quase um revival da Tradição, Família e Propriedade – organização civil dos anos de 1960 – o impeachment de Dilma Roussef nos chocou pelas palavras de ordem que se valeram da família e de Deus como justificativas na tomada de uma decisão eminentemente política.

Mas, em meio à tamanha balbúrdia, o estarrecimento veio com a fala do hoje candidato à presidência do Brasil pelo PSL: “perderam em 64, perderam agora em 2016. Contra o comunismo, pela nossa liberdade. Contra o Foro de São Paulo. Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Roussef”.

Ao invocar no plenário da Câmara Federal, outrora chamada de a “casa do povo”, o algoz de Dilma, reconhecido torturador, Bolsonaro cruzou a linha que separa os defensores de um patamar civilizatório conquistado com muita luta (estejam eles no espectro da direita, centro ou esquerda em suas variações) daqueles que flertam e, no fim, se aliam à barbárie.

Para quem acha que estou exagerando, retomo a fala do general da reserva e candidato a vice-presidente pela mesma chapa, Antônio Mourão. Ao ser questionado pela jornalista Miriam Leitão sobre o heroísmo de Ustra, mesmo que em seu comando tenham morrido 47 pessoas nas dependências do DOI-CODI, ele responde “houve uma guerra, excessos foram cometidos, mas heróis matam”.

Mortes, torturas e censura podem ser encaradas apenas como excessos? Talvez para quem tenha cruzado a linha civilizatória que se baseia na defesa da vida e da liberdade.

Há quase 10 anos tenho estudado a longa transição da ditadura civil-militar para a democracia no Brasil entre os anos de 1974 e 1985. Entendo que é inegável a participação ativa de diferentes setores da sociedade, como de parte da elite econômica, de estudantes a trabalhadores, da Igreja Católica à opinião pública internacional durante tal processo. Todos conclamavam por democracia, por Diretas Já!

Leia também: O PT e o dilema do prisioneiro

Contudo, não podemos nos esquecer que ela foi amplamente pactuada pela elite política e pela cúpula militar que controlava à mão de ferro a, por eles chamada de distensão lenta, gradual e segura.

Como uma comunidade política que partilha um destino, um futuro, não resolvemos o nosso passado recente, não punimos as atrocidades cometidas por agentes do Estado, que em tese deve tutelar a nossa segurança, mas que foi capaz de montar um complexo sistema de vigilância, execução e torturas de cidadãs e cidadãos, algo corroborado por documentos recentes da CIA e por inúmeras pesquisas feitas por pesquisadores brasileiros.

E agora abrimos as comportas para o revisionismo histórico… Sem lidar com o passado, abraçamos a desumanização em falas lacradoras do tipo “se foi torturado é porque mereceu”, “na minha família ninguém viu ditadura”.

Mas a perda de empatia não é obra do acaso, como o golpe de 1964 e a candidatura de Bolsonaro também não foram. Nos dois casos, há um esteio autoritário a fomentar uma racionalização maniqueísta da política, onde na lógica do bem contra o mal se elege um inimigo a ser eliminado.

A invocação do mal, feita em 1964, se repete agora na fala do candidato e de outro general da reserva, Luiz Eduardo Rocha Paiva, que em entrevista à Globo News diz que o PT está “implantando no país uma revolução silenciosa”.

Leia também: Quais são as formas de arejar a representação política?

Se antes, para o mesmo general, foi preciso “cortar o mal pela raiz” para acabar com o comunismo, o que fariam agora? Embora possamos tecer inúmeras críticas ao PT, não há sentido empírico em dizer que é um partido comunista.

Mas o acionamento do medo como estratégia política não é novidade, nos anos que antecederam o golpe de 1964 o anti-getulismo e o anti-comunismo eram representações de desordem social. E para retomar a ordem, soluções drásticas poderiam ser implantadas, sob o signo do terror.

Há quem diga que estamos em outro momento, que as Forças Armadas, enquanto instituição, não é golpista.

Mas como gato escaldado tem medo de água fria, relembro uma passagem do brasilianista e cientista político Alfred Stepan, sobre a Escola Superior de Guerra (ESG), que entre 1952 e 1956 se mobilizou para elaborar as diretrizes que seriam postas em prática em 1964, na Doutrina de Segurança Nacional.

Pois então, digo que não podemos esmorecer. Não podemos vacilar. E como onde há dominação, há também resistência, a vemos canalizada na narrativa transmídia #elenão #elenunca.

Das redes para as ruas, essa sublevação, inicialmente encabeçada por mulheres, que são a maioria do eleitorado, transbordou as militâncias partidárias, ganhando adeptas e adeptos no mundo das artes, do entretenimento, da academia, do mercado. Ou seja, em diversas esferas da vida social.

E se o manifesto supra-partidário Democracia Sim contava até hoje com 190.000 assinaturas, só as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro duplicaram esse número.

Revisitando a Passeata dos Cem Mil que ocorreu nos meses que antecederam a instauração do Ato Institucional nº 5 – o decreto que legalizava o terror – olho a movimentação política e feminista do #elenão com a esperança de que o avanço autoritário seja bloqueado e com a expectativa de novas rotas de fuga sejam criadas..

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