Política

Coronavírus repete com Bolsonaro fenômeno do ‘mensalão’ com Lula

Crise afasta elite e presidente mas, como o Bolsa Família, renda emergencial compensa popularidade do governo, ao atrair os mais pobres

O ministro Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro (Foto: Carolina Antunes / PR)
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A crise do “mensalão” de 2005/2006 mudou a base de apoio do então presidente Lula, segundo o cientista político André Singer, ex-porta-voz do petista. Se Lula elegera-se em 2002 com apoio forte da classe média, o “mensalão” levou esse estrato social, que valoriza o moralismo, a romper com ele. Na vitória de 2006, foram os mais pobres que votaram em peso em Lula, graças ao Bolsa Família. Um fenômeno escondido pela votação igual obtida pelo petista nas duas eleições, 61%.

Há pistas de que um fenômeno parecido pode estar em curso com Jair Bolsonaro, ao mesmo tempo em que, por coincidência, o inventor da teoria do “mensalão”, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), volta à cena política, só que para defender o presidente, não para sabotá-lo. A dúvida é se essa reconfiguração político-social é passageira ou veio para ficar.

Com Bolsonaro, é o coronavírus que faz as vezes do “mensalão” de promover um afastamento da classe média e dos mais ricos, a vanguarda eleitoral do ex-capitão em 2018. Algo que a demissão de Sérgio Moro talvez aprofunde. No lugar da Bolsa Família como fator de atração dos mais pobres, entra a renda emergencial básica de 600 reais que será paga durante a pandemia.

 

A aprovação do governo em 27 de abril era de 33%, segundo pesquisa feita naquele dia pelo Datafolha. Um índice que tem se mantido por aí desde março de 2019 e que não foi abalado pela queda de Moro três dias antes. Mas, escreveram Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretores do Datafolha, “há ligeira alteração no perfil que sustenta os índices de apoio a Bolsonaro”, ao se comparar com a pesquisa anterior, de dezembro.

Entre aqueles com renda familiar acima de cinco salários mínimos, os que acham o governo ótimo ou bom caíram de 44% para 35% entre dezembro e abril, enquanto os que o consideram ruim ou péssimo passaram de 30% a 41%. No caso dos brasileiros com ensino superior, a aprovação caiu de 35% para 31% e a desaprovação avançou de 36% para 47%.

Deu-se o oposto na base da pirâmide. A taxa de ótimo e bom entre a população com renda familiar máxima de dois salários mínimos subiu de 22% a 30%, ao mesmo tempo que a taxa de ruim e péssimo baixou de 43% para 38%. No recorte por escolaridade: aumentou de 29% para 37% a avaliação positiva entre aqueles com ensino fundamental, e caiu de 39% para 35% a negativa.

O Datafolha não foi o único instituto a constatar crescente antipatia ao governo por parte dos mais ricos e escolarizados e simpatia entre os mais pobres e com menos estudos. Levantamento realizado entre 13 e 15 de abril pelo DataPoder360, por encomenda da Associação Comercial da Bahia, identificou um cenário parecido.

A compreensão sobre o perigo do coronavírus e a necessidade das quarentenas é maior nas classes mais altas, as responsáveis, aliás, por importar o vírus para o Brasil, com suas viagens ao exterior. “Uma coisa é home office com a geladeira cheia e água potável na torneira. Outra é a realidade das favelas, onde a geladeira está vazia e 46% dos lares não têm água encanada”, diz Renato Meirelles, responsável por pesquisas do DataFavela.

Metade dos moradores dessas áreas carentes não aguenta ficar mais de uma semana sem trabalhar, do contrário, faltará dinheiro para comer, conforme o DataFavela. Entre eles, há receptividade ao discurso de Bolsonaro de que é preciso pensar nos impactos econômicos e no emprego gerados pelas quarentenas, embora o apoio às quarentenas seja maior.

Mas é a renda básica emergencial que começa a ser paga aos trabalhadores informais que parece ser decisiva no aumento do apoio dos mais pobres ao ex-capitão. Uma empreitada na qual o governo entrou com má vontade, depois enxergou o filão político-eleitoral e hoje capitaliza para si um mérito que, na verdade, é do Congresso.

Um outro levantamento do instituto Data Poder 360, feito dias 26 e 27 de abril de novo a pedido da Associação Comercial da Bahia, identificou que a aprovação do governo está em 29%. Mas é maior entre aqueles que receberam a renda emergencial, de 34%, e entre quem já está esperando receber, de 33%.

Essa renda emergencial será de 600 reais por três meses. Mais de 30 milhões de pessoas receberam a primeira parcela nos últimos dias. O cadastramento dos interessados pela Caixa Econômica Federal encontrou, segundo o governo, 46 milhões de brasileiros invisíveis, que não estavam em listas estatais nem recebiam algum benefício oficiais. É 22% da população.

Por ser paga pela Caixa e com verba federal, a medida tende a ser encarada pelas pessoas como obra de Bolsonaro. E os propagandistas do ex-capitão alardeiam que é isso mesmo. Em abril, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência botou nas redes sociais uma campanha que dizia: “O auxílio emergencial (…) não é de prefeituras nem de governos estaduais (…) é fornecido pelo governo federal”.

Em 27 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse ao lado de Bolsonaro, após vários dias de rumores de que sua insensibilidade social ameaçava deixá-lo sem cargo: “O presidente que garantiu o programa e bateu o martelo em 600 reais no auxílio emergencial. Isso lançou uma enorme camada de proteção aos invisíveis, 50 milhões de brasileiros”.

Quem busca tirar proveito político da medida agiu de outra forma há algumas semanas. O auxílio foi anunciado por Guedes em 18 de março. Seria de 200 reais, apenas. O ministro não mandou um lei ao Congresso. Foram os deputados que desengavetaram um projeto de 2017. Para eles, o valor de 200 reais era pouco. Subiram para 500. No dia da votação, Bolsonaro orientou seu líder na Câmara, Vitor Hugo (PSL-GO), a propor 600, para ficar com a paternidade da elevação.

Aprovada a lei, Guedes invocou a necessidade de alterar a Constituição, antes de começarem o pagamentos. Já Bolsonaro mandava a aliados um vídeo em que uma apoiadora dizia-lhe na porta do Palácio da Alvorada: “Eu não quero dinheiro do governo, eu quero trabalho”, “abra esse comércio”. Resposta do ex-capitão: “A senhora pode ter certeza que fala por milhões de pessoas”.

Para Renato Perissinotto, ex-presidente da Associação Brasileira de Ciência Política e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), não há novidade no apoio dos mais pobres por razões materiais ao governante da vez. Foi assim com Lula e o Bolsa Família, talvez seja assim com Bolsonaro e o auxílio. “A questão agora é a quantas mortes o Bolsonaro resiste”, diz, em alusão à pandemia.

Se a simpatia dos mais carentes em relação ao presidente se mantiver, tende a aprofundar um fenômeno inédito, apontado pelo filósofo Vladimir Safatle, da Universidade de São Paulo (USP). “Bolsonaro conseguiu criar um partido popular, uma direita popular. Criou a partir do momento em que desrecalca todos esses traços mais brutais e violentos, temas presentes na sociedade brasileira.”

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