Política

Contra Reforma da Previdência, Brasil tem “esquenta” para greve geral

Protestos, assembleias e panfletagens em portas de fábricas estão previstos nas principais capitais nesta sexta-feira

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São Paulo, 28 de abril de 2017. Era uma sexta-feira, dia útil, mas as ruas da cidade mais populosa da América do Sul amanheceram esvaziadas, o comércio às moscas, milhares de ônibus recolhidos nas garagens, estações de trem e de metrô fechadas. Os pontos de congestionamento concentravam-se apenas em torno dos bloqueios erguidos em grandes avenidas e rodovias. Parcela significativa da população paulistana optou por permanecer em casa após a convocação das centrais sindicais para uma greve geral. O movimento nas vias públicas só aumentou no período da tarde, quando um grande ato contra as reformas trabalhista e da Previdência reuniu ao menos 70 mil manifestantes no Largo da Batata, no bairro de Pinheiros.

A cena repetiu-se por mais de cem municípios, sobretudo nos maiores centros urbanos. Segundo estimativas das centrais, cerca de 40 milhões de brasileiros cruzaram os braços e não foram trabalhar naquela manhã. Além dos profissionais do transporte público, houve forte adesão de professores, bancários, petroleiros e metalúrgicos. Dezenas de milhares participaram dos protestos, também convocados pelos movimentos sociais que integram as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Em Belo Horizonte, uma passeata de 50 mil manifestantes percorreu as ruas da cidade. No Rio de Janeiro, os 40 mil cidadãos reunidos na Cinelândia viveram momentos de terror, após policiais militares iniciarem uma violenta dispersão do ato, que até então transcorria de forma pacífica, com incidentes isolados de vandalismo praticados por adeptos da tática Black Bloc infiltrados na manifestação contra as reformas. Em um país no qual os sindicatos sempre sofreram tentativas de contenção por parte do governo, uma mobilização dessa magnitude entrou para a história.

Neste momento, as centrais prometem repetir a dose, desta vez em reação ao desmonte da Previdência proposto pela equipe econômica de Jair Bolsonaro. Uma série de protestos, assembleias e panfletagens em portas de fábricas estão previstos nas principais capitais do País nesta sexta-feira, 22 de março. Trata-se de um evento preparatório, um “esquenta” para uma greve geral, como definem alguns líderes sindicais. O objetivo é iniciar a mobilização em defesa da aposentadoria, criando condições para uma nova paralisação nacional, caso a reforma proposta avance no Congresso. O movimento surge em um contexto dramático para os sindicatos, sob forte ataque do governo, que não poupa esforços para asfixiá-los financeiramente.

Publicada em edição extra do Diário Oficial da União dia 1º de março, no escurinho do recesso de Carnaval, a Medida Provisória nº 873 proíbe o recolhimento de contribuições, mensalidades e taxas com descontos na folha de pagamento, obrigando os sindicatos a emitir boletos bancários e enviar para a casa dos trabalhadores. Além disso, o decreto impede que assembleias e/ou convenções coletivas determinem o pagamento pelo trabalhador. A autorização para emissão do boleto precisa agora ser feita por escrito e de forma individual.

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Em 2017, a greve geral e a marcha das centrais em Brasília colocou água no chope de Temer. O projeto de Bolsonaro é ainda mais nocivo. (Foto: Yasuyoshi Chiba)

A intromissão estatal nesse quesito representa uma evidente afronta ao princípio constitucional da liberdade sindical. Em seu artigo 8º, inciso IV, a Constituição diz textualmente: “A assembleia-geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em leis”. Não é tudo. Por entrar em vigor imediatamente após a sua publicação, uma MP precisa ter caráter urgente e relevante, o que, obviamente, não é o caso.

Em virtude das flagrantes ilegalidades, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para pedir a suspensão liminar da Medida Provisória. Na ação, a entidade observa que os sindicatos “terão severamente dificultado o recolhimento das contribuições que provêm seu sustento e o financiamento de suas atividades”. Relator do caso, o ministro Luiz Fux pediu esclarecimentos à Presidência da República e remeteu o caso para o plenário da Corte, “tendo em vista a repercussão jurídica e institucional da controvérsia”. Enquanto isso, por orientação de federações e centrais, sindicatos de todo o País ingressam com ações na Primeira Instância para obter liminares que restabeleçam os descontos em folha e os repasses para custear as atividades sindicais. Na Câmara, há dezenas de emendas propostas por deputados para alterar a redação da MP.

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Em 2018, as receitas com o imposto sindical despencaram 90%. Agora, Bolsonaro quer impedir os descontos em folha de outras contribuições

“Pedir para o trabalhador pagar um boleto no banco, em meio à crise que está aí, é uma forma de acabar com a sustentação financeira dos sindicatos. Até mesmo uma taxa de 10 reais pode fazer falta no fim do mês. O objetivo do governo é destruir a Previdência e eles sabem que, para isso, precisam enfraquecer a nossa luta. Mas não vão conseguir, estamos habituados a lidar com situações adversas”, diz Vagner Freitas, presidente da Central Única dos Trabalhadores. “Na verdade, nunca existiu liberdade sindical plena no País. Quando o patrão descobre que o empregado tem interesse de se sindicalizar, é comum o funcionário sofrer ameaças de demissão ou ver a carreira congelada. Raros sindicatos têm acesso direto aos trabalhadores dentro das fábricas. Todos os anos, diversos sindicalistas são assassinados, sobretudo no campo. E até hoje o Brasil não ratificou a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho”, emenda. Esse tratado, subscrito por 108 dos 164 Estados-membros da OIT, apresenta normas de proteção ao direito de sindicalização.

Em grande medida, as mobilizações ocorridas ao longo de 2017 contribuíram para sensibilizar a população sobre as ameaças das reformas propostas por Michel Temer. Nos dias que antecederam a greve geral de 28 de abril daquele ano, sete em cada dez brasileiros eram contra as mudanças na Previdência. Quando o instituto perguntou aos 2.781 entrevistados sobre o aumento da idade mínima e do tempo de contribuição para a aposentadoria integral, a rejeição alcançava 87%. Pouco depois, Temer seria denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção, obstrução da Justiça e organização criminosa, após ser delatado por executivos da JBS. Em meio ao vendaval político e com a proximidade do calendário eleitoral, a base governista no Congresso recusou-se a assumir o ônus de aprovar uma reforma tão impopular.

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Paulo Cayres, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos, garante que a categoria não ficará desassistida.  (Foto: Fotoarena)

“A mobilização dos sindicatos foi fundamental para conscientizar a população. Além da greve geral, tivemos várias outras manifestações de peso. Em maio de 2017, para citar um exemplo, reunimos mais de 120 mil manifestantes de todos os cantos do Brasil em uma marcha em Brasília. Fizemos ainda uma intensa mobilização nas bases dos parlamentares, e muitos deles acabaram punidos nas urnas por atuar contra os interesses dos trabalhadores”, conta João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical. “Aliás, não descarto a possibilidade dessa medida provisória ser uma vingancinha do Rogério Marinho. Ele era deputado federal, votou a favor das reformas de Temer e não conseguiu se reeleger, como a gente várias vezes o alertou. Depois da derrota, foi nomeado secretário da Previdência e do Trabalho de Bolsonaro e parece querer punir o movimento sindical.”

Na verdade, muitos sindicatos sofreram um duro revés ainda no fim de 2017, quando a reforma trabalhista de Temer entrou em vigor e acabou com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário de cada trabalhador. A arrecadação do “imposto sindical”, como os detratores apelidaram a cobrança, despencou 90% no ano passado, de 3,64 bilhões de reais em 2017 para 500 milhões em 2018. Agora, o governo Bolsonaro pretende impedir descontos em folha de mensalidades e taxas negociais, mesmo quando elas são fruto de acordos coletivos, entre patrões e empregados, e quando o recolhimento foi aprovado em assembleia-geral da categoria. Para sobreviver, muitos sindicatos se viram forçados a fundir-se com outros. Outros tiveram de reduzir os serviços ofertados ou mesmo suspender as atividades.

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José Maria Rangel, da Federação Única dos Petroleiros, lembra das pesadas multas impostas  aos grevistas nos anos FHC. “Sobrevivemos e estamos aqui, como uma das categorias mais combativas”

Foi o que aconteceu com o Sindicato dos Empregados do Comércio de Porto Alegre, o maior da iniciativa privada gaúcha, que fechou as portas por período indeterminado, a partir da segunda-feira 18. “Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para manter o funcionamento. Vendemos todos os carros e passamos a fazer as atividades de fiscalização nas lojas com veículos alugados. Reduzimos o pessoal, fechamos duas das três creches que mantínhamos, mas não dá mais para continuar”, lamenta Nilton Neco, presidente do Sindec, ligado à Força Sindical. Pelas estimativas do dirigente, a receita global da entidade despencou 40% só com o fim do “imposto sindical”, mas pode desaparecer se não for mais possível descontar mensalidades ou taxas acordadas em negociações coletivas. “Continuaremos o nosso trabalho de fiscalização constante, mas agora de forma diferente.”

Presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos, Paulo Cayres considera abusiva a proibição do governo para os descontos em folha de pagamento. “Repare o absurdo: hoje, um trabalhador pode contratar um empréstimo consignado e o banco fará o desconto na folha, mas o sindicato não pode fazer o mesmo. Ainda que o trabalhador tenha dado expressa autorização para tanto, seria preciso enviar um boleto para a casa dele”, compara.

Marinho perdeu a base eleitoral, mas ganhou sobrevida no governo Bolsonaro

Atualmente, os metalúrgicos travam dura batalha para preservar os empregos de 3 mil funcionários ameaçados com o fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, na região do ABC Paulista, mas Cayres assegura que a falta de recursos não vai comprometer a defesa da categoria. “Eles podem nos enfraquecer financeiramente, mas jamais politicamente. Os metalúrgicos continuam unidos, têm uma das maiores taxas de associação do País”, diz. “Precisa ficar claro, no entanto, que estamos falando de luta de classes. O objetivo do governo Bolsonaro é destruir o movimento sindical, para não haver qualquer entrave à retirada de direitos dos trabalhadores. O ataque à aposentadoria é só o começo.”

Coordenador da Federação Única dos Petroleiros, ligada à CUT, José Maria Rangel concorda com o raciocínio. “Em 1995, fizemos uma greve de 30 dias. À época, Fernando Henrique Cardoso conseguiu nos imputar multas diárias de 100 mil reais a partir do 15º dia de paralisação. Alguns de nossos sindicatos amealharam dívidas superiores a 1,5 milhão de reais em valores da época, tiveram bens bloqueados. Sobrevivemos e estamos aqui, como uma das categorias mais combativas”, afirma. Em maio de 2018, os petroleiros também fizeram uma paralisação no embalo da greve dos caminhoneiros, e receberam pesadas multas até retornar ao trabalho. Agora, os 13 sindicatos associados à FUP entraram na Justiça para obrigar a Petrobras a manter os descontos e repasses. “Vários deles conseguiram liminares na Primeira Instância. No próximo dia 22, além de denunciar o desmonte da Previdência e os perigos das privatizações, vamos incluir na pauta os ataques à organização sindical.”

Para 90 milhões de brasileiros, a aposentadoria pode converter-se em distante miragem

Temer não conseguiu desfigurar a Previdência, mas a equipe de Bolsonaro apresentou uma proposta ainda mais nociva. Além de aumentar a idade mínima e exigir 40 anos de contribuição para o trabalhador ter direito à aposentadoria integral, o governo pretende retirar da Constituição os critérios para a concessão dos benefícios, que passariam a ser regidos por Leis Complementares. Dessa forma, para alterar a regra do jogo não seria mais preciso aprovar uma emenda constitucional, que exige dois turnos de votação e maioria qualificada: três quintos dos deputados, o equivalente a 308 votos. Seria possível mudar novamente com maioria simples, 257 votos.

As regras para a concessão de benefícios são tão duras que a maior parte da população talvez nunca se aposente. Como alerta o economista Eduardo Fagnani, existem 170 milhões de brasileiros em idade ativa, mas cerca de 40 milhões estão fora da força de trabalho. Há ainda 12 milhões de desempregados e 35 milhões de trabalhadores sem carteira assinada ou com vínculos precários. Ou seja, quase 90 milhões não têm capacidade de contribuir para a Previdência hoje e dificilmente contarão com essa proteção na velhice.

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