Política

Com Bolsonaro, Brasil aposta no militarismo e expõe face obscurantista

O presidente nomeou mais generais para o primeiro escalão do que governos da ditadura, e eles parecem moderados frente aos ministros civis

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Sob forte esquema de segurança, a incluir mísseis antiaéreos guiados por laser e capazes de abater aviões a até 7 quilômetros de distância, Jair Bolsonaro assume a Presidência nesta terça-feira, 1º de janeiro. A cerimônia contará com a presença de mais de 3,2 mil policiais militares, civis, federais e bombeiros, além de integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Trata-se do maior efetivo destacado em Brasília para a posse do novo chefe de governo. Pela primeira vez, setores da Esplanada dos Ministérios serão cercados com espirais de arame farpado.

Publicado no Diário Oficial da União de 28 de dezembro, um decreto assinado por Michel Temer e seu ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna, autoriza o abate de aeronaves “suspeitas ou hostis” em todo o território nacional no dia da posse. O inédito sistema de segurança montado pela Força Aérea, típico de nações em estado de guerra ou na mira do terrorismo internacional, parece feito sob medida para um governo que aposta no militarismo e prega a facilitação do porte de armas para civis.

Ex-capitão do Exército, Bolsonaro nomeou sete ministros com formação militar para o primeiro escalão de seu governo, quase um terço do total. O número é superior ao da gestão de Castello Branco, logo após o golpe de 1964, e está no mesmo patamar do ditador Emílio Garrastazu Médici.

O Ministério da Defesa foi entregue ao general Fernando Azevedo e Silva. A Secretaria de Governo ficará sob os cuidados do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que liderou missões no Haiti e no Congo. O general reformado Augusto Heleno, comandante da missão de paz das Nações Unidas no Haiti, será o titular do Gabinete de Segurança Institucional.

Tenente-coronel reformado da Força Aérea e único brasileiro a viajar para o espaço, o astronauta Marcos Pontes chefiará a pasta de Ciência e Tecnologia. O almirante Bento Costa Lima assumirá o Ministério de Minas e Energia. Formado pelo Instituto Militar de Engenharia e oficial do Exército até 2008, Tarcísio Gomes de Freitas será o novo ministro da Infraestrutura. No governo de Dilma Rousseff, ele foi diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura dos Transportes (Dnit).

Militares fazem ensaio para a posse de Bolsonaro (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)

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Formado pela Academia Militar de Agulhas Negras, o atual ministro da Transparência e Controladoria Geral da União, Wagner Rosário, permanecerá à frente do cargo. Ele serviu as Forças Armadas por 27 anos, até 2009. À época da baixa, Rosário era capitão do Exército.

A turma fardada parece, porém, mais moderada e profissional do que os civis escolhidos por Bolsonaro para ocupar a Esplanada dos Ministérios.  Guru do novo presidente, Olavo de Carvalho emplacou dois ministros: o chanceler Ernesto Araújo, que jamais ocupou cargo de relevo no Itamaraty, e o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez para a pasta da Educação.

Admirador do presidente norte-americano Donald Trump, o futuro ministro das Relações Exteriores é adepto de uma série de posicionamentos delirantes, da negação do aquecimento global a teorias conspiratórias sobre uma suposta dominação marxista internacional. Rodríguez, por sua vez, é um reacionário católico com inegáveis afinidades ideológicas com a Bancada da Bíblia no Congresso. Formado em filosofia pela Universidade Pontifícia Javeriana e em teologia pelo Seminário Conciliar de Bogotá, ele foi professor da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército.

Logo após ser ungido, Rodríguez divulgou uma carta, na qual expõe sua peculiar visão de mundo. “Pretendo colocar a gestão da Educação e a elaboração de normas no contexto da preservação de valores caros à sociedade brasileira, que, na sua essência, é conservadora e avessa a experiências que pretendem passar por cima de valores tradicionais ligados à preservação da família e da moral humanística”, disse. Em manifestações anteriores, qualificou o projeto Escola Sem Partido, evidente tentativa de amordaçar professores e impedi-los de expressar qualquer opinião em sala de aula, como uma “providência fundamental”.

Da mesma forma, o futuro ministro da Educação parece disposto a censurar nas escolas qualquer debate sobre desigualdade de gênero ou emancipação da mulher. “Se o problema para a militância esquerdista é a superpopulação do planeta, a melhor forma de equacionar a questão é a ‘ideologia de gênero’. Com ela paramos de nos reproduzir. A família e os valores tradicionais da nossa Civilização Ocidental irão, claro, para a lata do lixo da história”.

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A “equipe de notáveis” de Bolsonaro conta ainda com a pastora Damares Alves, que acaba de lançar um livro para relatar o seu insólito encontro com Jesus Cristo diante de um pé de goiabeira. Assessora do senador Magno Malta, que não conseguiu se reeleger, a advogada será a ministra das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos. Sob o seu guarda-chuva estará também a Funai, responsável por proteger os povos indígenas.

Detalhe: Damares é fundadora da ONG Atini, investigada pelo Ministério Público Federal por promover uma campanha difamatória contra povos indígenas e acusada de participar da adoção irregular de uma criança da etnia Sateré Mawé por um casal de Volta Redonda, no interior fluminense.

Logo após ser indicada para o cargo, a futura ministra antecipou que cerrará fileiras contra qualquer tentativa de ampliar as possibilidades legais de interrupção da gravidez. “O aborto não desengravida nenhuma mulher. A mulher caminha o resto da vida com o aborto. Se a gravidez é um problema que dura só nove meses, eu digo para vocês que o aborto é um problema que caminha a vida inteira com a mulher”, disse.

Após indicar para o Ministério da Agricultura a deputada Tereza Cristina, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária e apelidada por colegas como “Musa do Veneno”, por sua atuação em defesa dos agrotóxicos, Bolsonaro indicou o advogado Ricardo Salles para a pasta do Meio Ambiente, outro queridinho da bancada ruralista.

Salles parece preencher todos os requisitos para integrar a equipe de Bolsonaro. Fundador do movimento Endireita Brasil, o advogado foi secretário particular do tucano Geraldo Alckmin e chegou a chefiar a pasta do Meio Ambiente no governo paulista, mas terminou a gestão com um ruidoso processo por improbidade administrativa, acusado de adulterar mapas do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Várzea do Rio Tietê, em benefício de setores econômicos.

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Em primeira instância, o juiz Fausto José Martins Seabra, da 3.ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, suspendeu os direitos políticos de Salles por três anos e o condenou a pagamento de multa, além de proibi-lo de firmar contratos com o Poder Público. O futuro ministro antecipou que irá recorrer da decisão.

Filiado ao partido Novo, Salles disputou uma vaga na Câmara Federal com o número “3006” nas urnas, curiosa homenagem a um tipo de bala para fuzis. Em nome da “segurança no campo”, sugeriu o uso da munição “contra a praga do Javali” e “contra a esquerda e o MST” em uma de suas peças de propaganda.

O advogado não se elegeu, mas conseguiu uma vaga de suplente. Corre, porém, o risco de ter candidatura cassada. A Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo o acusa de abuso do poder econômico, por ter veiculado propaganda eleitoral disfarçada em um jornal antes do período permitido. Se condenado, pode ficar inelegível por oito anos.

Ministros na mira da Justiça
Salles não é o único integrante do governo com problemas na Justiça. À frente do “superministério” da Economia, a reunir as estruturas da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio, Paulo Guedes entrou na mira do MPF no início de outubro. O motivo? Possível crime contra o sistema financeiro de sua parte, uma pessoa que fez fortuna no mundo das finanças.

A Polícia Federal abriu recentemente um inquérito e vai ajudar nas investigações. A Receita prepara uma análise fiscal detalhada de Guedes e suas empresas. Não era um desconforto esperado por Bolsonaro às vésperas da posse. O economista é considerado um dos esteios de seu governo, e é graças ao neoliberalismo radical do chicago boy que o dito “mercado” deposita seu otimismo em relação ao ex-capitão.

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Onyx Lorenzoni e Paulo Guedes iniciam o governo sob suspeição (Foto: Valter Campanato/ABr)

Guedes é investigado por gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira e pela emissão ou comércio de papéis sem lastro. São delitos previstos na lei de crimes contra o sistema financeiro, a 7.492, de 1986. Quem os comete pode ser condenado de 2 a 12 anos de cadeia.

Indicado para comandar a poderosa Casa Civil, Onyx Lorenzoni é outro ministro que começa sob suspeição. No início de dezembro, o juiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de um inquérito sobre caixa 2 contra ele. A apuração tinha sido pedida no fim de novembro pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

Deputado gaúcho pelo DEM, Lorenzoni foi citado em delação do criminoso confesso Ricardo Saud, da JBS/Friboi, como recebedor de 200 mil reais “por fora” para campanhas eleitorais. Metade teria sido dada em 2012, eleição em que Lorenzoni não concorreu a nada, e a outra metade na campanha de 2014, em que se reelegeu.

Quando a delação veio à tona, em maio de 2017, o parlamentar admitiu ter usado 100 mil reais da JBS para pagar dívidas de campanha em 2014. E comentou: “Quero pedir desculpas ao eleitor que confia em mim pelo erro cometido”. Sobre 2012, ele negava. Em meados de novembro, a Folha de S.Paulo revelou que uma planilha da JBS mostra os tais 100 mil de 2012, que o deputado continua a negar ter recebido.

Lorenzoni é um embaraço para Sérgio Moro. Ao aceitar ser ministro da Justiça, após condenar Lula e divulgar trechos da delação de Antonio Palocci em plena campanha eleitoral, o ex-juiz foi questionado a respeito do caso do deputado gaúcho e respondeu, em uma entrevista coletiva: “Ele mesmo admitiu os seus erros, pediu desculpas e tomou as providências para repará-los”. Uma declaração curiosa para um magistrado que, em palestra em Harvard em 2017, dizia que “caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia (…) é pior que desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”.

Um dia após Fachin ter autorizado a investigação de Lorenzoni pela PGR, Moro deu outra entrevista coletiva e afirmou ter “confiança pessoal” no colega de equipe bolsonarista. O presidente eleito é menos entusiasmado. Em 14 de novembro, disse, a propósito da situação de Lorenzoni, que confiar 100%, só na mãe e no pai. Depois prometeu que, em caso de “denúncia robusta”, usará sua “caneta Bic” contra qualquer membro de seu governo.

Conterrâneo e crítico de Moro, o senador Roberto Requião, do MDB do Paraná, aproveitou o caso Lorenzoni para concluir o mandato com uma proposta irônica. Apresentou uma “Lei Lorenzoni”, a prever a possibilidade de “perdão judicial” para acusados que se mostrarem arrependidos, confessem o malfeito e peçam desculpas públicas.

Requião emendou: “Creio, ainda, que as mesmas vantagens, privilégios e prerrogativas ao perdão devem ser estendidas aos crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro. E por quê? A razão é simples: para poder estender o perdão a Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda”.

Da caserna para o Palácio do Planalto
Capitão reformado do Exército, Bolsonaro saiu das Forças Armadas em 1988, após um rumoroso processo disciplinar no qual foi acusado de planejar explodir bombas em quartéis para reivindicar aumento salarial. Acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar por falta de provas. Naquele mesmo ano, lançou-se na política e conquistou uma cadeira de vereador no Rio de Janeiro. Dois anos depois, ele desembarcava na Câmara dos Deputados.

No início, a sua atuação legislativa era voltada, sobretudo, à defesa de benefícios e melhor remuneração para os militares. Por se portar como uma espécie de “sindicalista da caserna”, sempre foi visto com desconfiança pelo alto oficialato – resistência que parece ter diminuído somente nos últimos anos, à medida em que o parlamentar conquistou a simpatia e o apoio de generais da reserva. Em 1993, o ex-ditador Ernesto Geisel chegou a chamar Bolsonaro de um “mau militar”.

Em quase 30 anos de atuação parlamentar, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos de sua autoria. O primeiro trata de uma proposta que estendia o benefício de isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para bens de informática. O segundo autorizava o uso da chamada “pílula do câncer” – a fosfoetanolamina sintética, que jamais teve sua eficácia científica comprovada. Ele nunca ocupou cargo de destaque no Parlamento e sempre integrou o chamado baixo clero.

Bolsonaro foi eleito com 57,7 milhões de votos (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)

Racista, homofóbico, misógino e pró-ditadura, como resumiu o jornal francês Liberátion e diversas outras publicações estrangeiras, Bolsonaro foi recordista em representações no Conselho de Ética da Câmara. Nos anos 1990, chegou a dizer que o então presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ter sido fuzilado durante a ditadura. O desejo de eliminar adversários políticos à bala parece uma obsessão. Em plena campanha, durante um comício no Acre, prometeu “fuzilar a petralhada”, enquanto simulava uma execução com um tripé de câmera.

Dono de um discurso visceral contra o PT, soube como ninguém se beneficiar do antipetismo alimentado pela mídia desde o impeachment de Dilma. Com uma legião crescente de seguidores nas redes sociais, é frequentemente saudado por apoiadores aos gritos de “mito”. Fenômeno digital, era o candidato à Presidência com maior número de seguidores no Facebook, mais de 7,3 milhões. No Twitter, eram mais de 1,6 milhão.

Sua maior força, no entanto, está no WhatsApp, onde as postagens dos incontáveis grupos de fãs não podem ser rastreadas. De acordo com um estudo do Instituto para Internet de Oxford, os apoiadores de Bolsonaro são os que mais disseminam notícias falsas ou distorcidas.

Ao longo da campanha, Bolsonaro foi acusado de se beneficiar de uma rede ilegal de disparo de mensagens anti-PT bancada por empresários próximos, a exemplo de Luciano Hang, da rede varejista Havan. O Tribunal Superior Eleitoral determinou a abertura de um inquérito para apurar o caso.

Bolsonaro foi eleito presidente da República com 57,7 milhões de votos, 55% do total válido. Foram mais de 10 milhões de sufrágios de vantagem sobre o seu adversário no segundo turno, o petista Fernando Haddad. Com promessas de reformas liberais na economia e um agressivo discurso contra a esquerda, ele interrompeu a série de vitórias do PT, que ganhou quatro eleições consecutivas entre 2002 e 2014.

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