Política

Celso Amorim: O governo de militares tem visão rasa do nacionalismo

Para o ex-chanceler, militares até são territorialistas, mas ignoram os riscos do neoliberalismo

Celso Amorim
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Os oito anos no comando do Itamaraty e os quatro à frente do Ministério da Defesa aproximaram o diplomata Celso Amorim da cúpula militar do Brasil. Embora impressionado com o nacionalismo “raso” dos generais, o ex-chanceler continua a acreditar que as Forças Armadas representam o mínimo de bom senso em um governo que decidiu concorrer com os comediantes do resto do País e reuniu uma tropa capaz de fazer inveja ao elenco de A Praça é Nossa. A retomada do diálogo e da eventual reconstrução do Brasil, acredita, passará pelos militares e pelo vice-presidente Hamilton Mourão.

CartaCapital: Completados cem dias do governo, o que é possível afirmar sobre o papel dos militares em Brasília?

Celso Amorim: Este não é um governo militar, mas de militar. As Forças Armadas, creio, se juntaram ao Bolsonaro por razões diversas. Não me parece que havia uma ideia de levar o Brasil à redenção. Tradicionalmente, os militares ecoam o pensamento da chamada classe média. Por conta de suas funções, são levados a um convívio próximo com a elite e esse processo naturalmente alimenta um viés conservador nos oficiais. Diferentemente de 1964, eles não carregam desta feita uma ideologia pronta. A ideologia está em outros setores, entre os olavistas e a turma do Paulo Guedes. Os militares, a meu ver, introduzem elementos de moderação. E em muitos momentos, como temos visto, destoam da visão de Bolsonaro.

CC: Eles não se tornaram menos nacionalistas do que seus pares do golpe de 1964?

CA: A preocupação das Forças Armadas é muito mais territorialista do que nacionalista em um sentido mais amplo. Eles resistiram à base militar dos EUA no Brasil, que havia sido prometida pelo Bolsonaro. Precisamos conhecer os termos do acordo de uso da Base de Alcântara. Tenho certeza de que ele não é bom, mas não se compara a aceitar uma base do Exército norte-americano no País. O acordo, de qualquer forma, precisará ser aprovado pelo Congresso e vai estimular um debate. De qualquer maneira, a visão nacionalista das Forças Armadas não penetra fundo. Eles parecem incapazes de associar essa defesa territorial às implicações econômicas de certas decisões, dos riscos do avanço da visão neoliberal. Defendem o pré-sal, mas não se mostram preocupados com quem o explora, se a Petrobras ou a Shell. É um nacionalismo um pouco capenga.

CC:  Em que medida eles mandam?

CA: Eles não conduzem o governo diretamente, exercem uma tutela. As Forças Armadas têm funcionado como um elemento de moderação.

“Diferentemente de 1964, desta vez os generais não trouxeram uma ideologia pronta”. Esta é obra dos olavistas e da turma do Paulo Guedes

CC:  Há uma racionalidade nos militares ou o problema é que as outras áreas do governo se tornaram um antro de tresloucados e isso faz os generais parecerem razoáveis?

CA: Racionais, não sei dizer. Em tempos normais, eles são pragmáticos e têm horror à instabilidade, pois isso os coloca numa posição difícil. Quer dizer que gostaria de ser governado pelo general Mourão? Não, mas ele pode ser uma voz de bom senso para o diálogo e eventual acordo nacional. Muita coisa precisa acontecer para o Brasil retomar algum grau de normalidade das instituições, mas há um ponto essencial, a libertação do ex-presidente do Lula.

CC:  Se o governo Bolsonaro tornar disfuncional para os donos do poder, corremos o risco de uma intervenção militar direta?

CA: Não creio, é um terreno de pura especulação. O general Mourão tem dito que os militares estão muito preocupados em pagar a conta dos desmandos do governo. Essa troca no Ministério da Educação… Substitui-se um insano incompetente por alguém com as mesmas ideias. Não posso avaliar ainda se ele é ou não competente. O novo ministro afirmou: “Quando vejo um comunista, eu não discuto, xingo”. É um vexame.

CC:  Muitos acusavam os governos do PT – e o senhor foi peça fundamental na estratégia – de conduzir uma política externa “ideológica”. Mas ideologia mesmo quem demonstra são Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo, não? O alinhamento automático a Donald Trump, o desprezo por parceiros tradicionais e os ataques à China não trazem nenhuma vantagem comercial ao País.

CA: Ao contrário. Só dão prejuízo. O Brasil abriu mão do tratamento diferenciado para países em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio. Se algum dia acontecer uma negociação sobre o tema que mais nos interessa no comércio internacional, os subsídios agrícolas, não poderemos desfrutar do direito de reduções menores nas barreiras e prazos maiores de aplicação das regras. É uma diplomacia feita no impulso, a partir das predileções pessoais dos nossos representantes. Relembremos a promessa da base militar dos EUA no Brasil. Segundo Bolsonaro, seria um gesto de amor a Trump.

CC:  E se o Partido Democrata vencer as eleições do ano que vem nos EUA? O que acontece?

CA: Tudo isso se desmancha no ar. Bolsonaro e o Itamaraty enxergam Trump como o salvador do Ocidente, mas o que é o Ocidente hoje em dia? Nunca vi tanta confusão mental. O Barack Obama, por exemplo, é fruto do “marxismo cultural” que o governo brasileiro tanto abomina? Quando o Trump foi eleito, disse, aqui na Carta mesmo, que o pior seria o seu mau exemplo para o mundo. Nunca imaginei estar tão certo.

Os fardados representam a moderação no governo, acredita o ex-chanceler

CC:  O impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula, a brutalidade do governo Temer e estes primeiros meses de Bolsonaro tornaram o Brasil um pária na geopolítica. Quanto vai custar para o País recuperar algum respeito internacional?

CA: Depende dos próximos desdobramentos. Tenho dúvidas se os militares concordam com a ideia de que o globalismo é produto do “marxismo cultural”. Vários deles lideraram nos últimos anos missões destacadas da ONU e isso só foi possível por causa do globalismo. Não faz sentido o Brasil ficar de fora do Pacto de Migração só para imitar os Estados Unidos. Há mais brasileiros fora do que migrantes aqui. Ou se recusar a um acordo sobre o clima. É preciso ver como iremos nos comportar na relação com os BRICs e como o grupo vai nos enxergar.

CC:  Para o chanceler, a China é o eixo do mal. Enquanto isso, os EUA estão prestes a vender anualmente 30 bilhões de dólares em produtos agrícolas para os chineses. Será às custas do agronegócio brasileiro, não?

CA: É evidente que o Brasil, como parceiro leal dos BRICs, tem uma preferência natural na hora das encomendas desses países serem decididas. Mas, neste momento, por qual razão a China deixaria de fazer concessões aos Estados Unidos, em troca de outros benefícios, para comprar do Brasil, que a considera a encarnação do demônio ou a líder de uma conspiração para destruir os valores cristãos e ocidentais?

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