Política

Brasil criou Justiça boa para juiz e ruim para a população

Tribunais têm salários de marajá mas baixa eficiência, devido à independência exagerada, diz estudo

Supremo Tribunal Federal
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Em 2020, o salário mínimo não terá ganho real, mas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acaba de universalizar uma mordomia para juízes e servidores do Judiciário. Todos receberão um auxílio-saúde de 10% do salário, caso não tenham convênio do tribunal em que trabalham. A remuneração média dos togados em 2018 foi de 46,7 mil reais e a de seus funcionários, de 15,3 mil.

Duas semanas antes dessa decisão, tomada em 10 de setembro, o CNJ havia divulgado seu anuário sobre o estado do Judiciário. O estoque de processos pendentes subiu sem parar por anos e anos e só foi cair de 2017 (80 milhões) para 2018 (78,7 milhões). A queda ocorreu devido ao aumento das decisões dos juízes (3,8%) e à redução no número de casos novos (1,9%).

Esses dois grupos de informações saídas do órgão criado para vigiar magistrados e tribunais (mais mordomia para quem tem salário de marajá e grande estoque de processos) ilustram algumas das conclusões de um estudo recém publicado sobre os últimos 30 anos da Justiça brasileira, período pós-Constituição.

Aqui juiz decide muito, ganha demais, tem funcionários muito bem pagos, mas o Judiciário em geral é um caos, elitista e concentrador de renda. É o diagnóstico do brasileiro Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e do americano Matthew MacLeod Taylor, da American University, no artigo “Juízes eficientes, Judiciário ineficiente no Brasil pós-1988”.

Da Ros já havia feito uma pesquisa, de 2015, que identificara a Justiça brasileira como campeã mundial de gastos, 1,3% do PIB – no novo anuário do CNJ, a despesa foi de 1,4%. Em 2015, quem vinha atrás aparecia longe, com 0,3%, Alemanha e Venezuela. Agora Da Ros descobriu novidades, mas nada que tire o ouro do Brasil: Costa Rica gasta 1,25%, Argentina 1,09% e El Salvador, 0,99%.

“Os demais países nas Américas e na Europa apresentam despesas significativamente inferiores, mantendo-se todos abaixo de 0,6% do PIB. Mesmo a despesa per capita absoluta do Judiciário brasileiro é superior a de todos os países europeus, com exceção da Suíça”, afirma o artigo.

Salário é a principal fonte de despesas do Judiciário nacional: 90% do gasto total de 93 bilhões de reais em 2018, informa o anuário do CNJ. Recorde-se: o salário médio dos juízes foi de 46,7 mil em 2018 (21 vezes a renda média do trabalhador em dezembro daquele ano, de 2,2 mil reais, segundo o IBGE) e de 15,3 mil para servidores (sete vezes a renda média dos trabalhadores).

Os juízes brasileiros são marajás e o que ganham, mordomias incluídas, não têm paralelo no mundo. Com dados de 2015 daqui e de 2014 da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (Cepej, na sigla em inglês), Da Ros e Taylor expõem com nitidez a casta do privilégio.

Aqui, um togado começa a carreira ganhando 11,3 vezes a renda per capita nacional e termina com 13,9 vezes. Nos Estados Unidos esses mesmos números são 3,2 e 4,1. Na Alemanha, 1,2 e 3,1. Na Itália, 2 e 6,7. Em Portugal, 1,7 e 4,1. Na França, 1,1 e 3,4. Na Espanha, 2,1 e 4,7.

O salário basta para botar os 18 mil juízes brasileiros no 1% mais rico, clube do qual se faz parte com 27 mil reais, conforme o IBGE. Somos o 10o país mais desigual, segundo a ONU, mas se o assunto é concentração de renda no 1%, somos vice. O 1% fica com 28% do PIB, segundo uma equipe francesa coordenada pelo economista Thomas Piketty. O primeiro lugar é do Catar, com 29%.

O estudo de Da Ros e Taylor ressalta que, além do holerite generoso, os juízes embolsam regalias, como auxílios saúde, alimentação, transporte, que são jabuticabas. “O Judiciário da maioria dos países europeus não fornece tais benefícios. Auxílio à moradia, por exemplo, existe apenas em Portugal, na Rússia e na Turquia. Inversamente, os únicos auxílios adicionais recebidos por magistrados na Alemanha, na Espanha, na França e na Itália são relativos à produtividade.”

Registre-se que, além do salário de marajá e das mordomias, os magistrados brasileiros possuem 60 dias de férias por ano garantidas em lei. Mesmo que não as tirem integralmente, o que ajudaria a reduzir o estoque de 78 milhões de processos pendentes nos tribunais, eles as vendem. E enchem mais os bolsos.

Seus funcionários são muito bem pagos também e formam um batalhão enorme, duas coisas sem igual no planeta. Sua média salarial equivale a cinco vezes a renda per capita nacional, segundo Da Ros e Taylor. É uma proporção maior do que a recebida por juízes estrangeiros. Nos EUA, em Portugal e na Espanha, um togado em fim de carreira ganha quatro vezes a renda per capita. Na Alemanha e na França, três.

O número total de servidores no Judiciário brasileiro é de 272 mil, conforme o último anuário do CNJ. Considerando-se estagiários e trabalhadores temporários, a Justiça tem 450 mil pessoas. Quando Da Ros e Taylor preparavam o artigo, eram 430 mil, dado constante do anuário de 2018 do CNJ. Com base nesses 430 mil, a dupla estimar haver 207 trabalhadores na Justiça a cada 100 mil brasileiros.

É uma “proporção comparativamente elevada”, afirmam os pesquisadores. “A maioria dos países não se aproxima dessa proporção, oscilando entre 33 e 67 funcionários não magistrados por 100 mil habitantes. Os poucos países que se aproximam à taxa brasileira são: Argentina (150), Eslovênia (161) e Croácia (162).”

Se os juízes estão no 1% mais abonado, seus servidores são igualmente privilegiados. Integram o time dos 10%, que nos cálculos do IBGE são os que ganham acima de 9,5 mil reais mensais.

Compreensível, portanto, Da Ros e Taylor terem escrito que “outra área de preocupação é o elitismo do judiciário”. Para a dupla, esse elitismo se reflete, por exemplo, “na fraca resposta do sistema judicial a casos de direitos humanos, como homicídios praticados por policiais, com especial impacto sobre pobres e não brancos”.

Um perfil sociodemográfico dos juízes brasileiros divulgado em 2018 pelo CNJ mostrou: 80% dos togados eram brancos (os brancos são 47% da população), 33% eram filhos de pai ou mãe juiz.

Baixa resolutividade

Apesar de muito bem pagos pelos 200 milhões de brasileiros, juízes e seus servidores não produzem uma Justiça eficiente. Ao contrário. “Demonstramos a existência de um aparente descompasso entre magistrados de alta produtividade decisória e um poder Judiciário de baixa resolutividade no Brasil, isto é, com reduzida capacidade de resolução definitiva de conflitos em tempo hábil”, dizem Da Ros e Taylor.

Os dois pesquisadores veem “redundância decisória” no Judiciário brasileiro. Os juízes decidem da própria cabeça, sem levar em conta o histórico de decisões para casos semelhantes e sem dar bola para a jurisprudência das altas cortes, como o Supremo Tribunal Federal. Este, aliás, é exemplar do cada um por si judicial, vide o recém lançado livro “Os onze”, número de togados no STF.

Em março de 2016, Gilmar Mendes, do STF, proibiu, via liminar, a nomeação de Lula como ministro de Dilma Rousseff. Alegou que a nomeação queria proteger Lula de um juiz de primeira instância (Sérgio Moro). Em 2017, Celso de Mello, também do STF, negou liminar em uma ação que apontava a mesma blindagem contra um juiz de primeira instância por trás da nomeação ministerial do emedebista Moreira Franco no governo Michel Temer

Diante da “redundância decisória”, comentam Da Ros e Taylor, chega a ser “racional” uma empresa levar qualquer disputa para o Judiciário e tentar postergar uma decisão o quanto puder. E não falta advogado no Brasil, anotam os pesquisadores: 1,1 milhão registrados na OAB. Em 2010, o CNJ mostrou que o País sozinho tinha mais curso de Direito do que EUA, Europa e China juntos.

Para Da Ros, os magistrados brasileiros têm independência demais e deveriam ter menos. Não confundir, porém, com mordaça. O que deveria acontecer, afirma ele, é os juízes seguirem jurisprudências existentes, para que houvesse sempre a mesma decisão de casos semelhantes, por exemplo.

Além do cada um por si decisório no Judiciário e da massa de advogados na praça, o Judiciário construído pela Constituição de 1988 contribui para o caos e a ineficiência do sistema judicial.

Na ditadura militar (1964-1985), segundo Da Ros e Taylor, os tribunais eram subservientes aos quartéis. Para enterrar esse passado, os constituintes criaram vários mecanismos para tornar a Justiça mais acessível e atuante. Entre as inovações, ações civis públicas, defensorias públicas, Ministério Público livre, autorização para partidos políticos entrarem com ações diretas de inconstitucionalidade. Resultado: “Vertiginoso aumento da demanda” judicial em 30 anos.

Diante disso tudo, fica mais fácil entender por que o Brasil tem 78,7 milhões de processos parados. E por que a perspectiva não é nada boa, na visão de Da Ros e Taylor: “Dadas a demanda judicial crescente e a persistência do congestionamento, é improvável que a demora na tramitação da maior parte dos processos se reduza significativamente no horizonte próximo”.

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