Política

Bolsonaro mente ao dizer que recuperados da Covid não devem se vacinar; entenda o porquê

Apesar do ex-capitão, o País chega a 100 milhões de pessoas com vacinação completa e resiste ao discurso anticientífico

Lançamento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19. (Foto: Isac Nóbrega/PR)
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O presidente Jair Bolsonaro, que disse há seis meses que poderia ser “o último brasileiro” vacinado contra a Covid-19, agora afirma publicamente que não se imunizará, por já ter contraído a doença. Trata-se, no entanto, de mais um ato de desinformação e de incentivo ao negacionismo.

“Eu decidi não tomar mais a vacina. Eu estou vendo novos estudos, a minha imunização está lá em cima, para que vou tomar a vacina? Seria a mesma coisa que você jogar 10 reais na loteria para ganhar 2 reais. Não tem cabimento isso”, alegou o ex-capitão em entrevista à Rádio Jovem Pan na noite da terça-feira 12. “Para mim, a liberdade acima de tudo. Se o cidadão não quer tomar a vacina, é um direito dele e ponto final”.

Nesta quinta-feira 14, voltou à carga com o discurso anticientífico. “Por que vou tomar a vacina para conseguir uma quantidade de anticorpos menor? Por que essa obsessão?”, declarou, em entrevista à Rádio Novas de Paz.

As afirmações, porém, não condizem com as orientações de especialistas e autoridades sanitárias.

Em recomendações atualizadas em 7 de outubro, a Organização Mundial da Saúde diz que “mesmo quem já teve Covid-19 deve ser vacinado”. A instituição explica que a proteção que alguém adquire por ter Covid-19 varia de pessoa para pessoa e não se sabe quanto tempo dura a imunidade natural.

Em recomendação de 7 de junho, a Fundação Oswaldo Cruz, que produz a vacina da AstraZeneca, também escreveu que “mesmo quem já teve Covid-19 deve ser imunizado”. Segundo a Fiocruz, nesses casos é preciso aguardar um mês, com contagem válida a partir do 1º dia de sintoma ou, em caso de assintomáticos, após o resultado positivo do exame RT-PCR.

Em uma página de checagem de informações falsas, o Instituto Butantan, que produz a vacina Coronavac, diz que é fake a afirmação de que “quem já teve Covid-19 não precisará receber a vacina”. O laboratório explica que “a maioria das pessoas que tiveram Covid-19 gera resposta imune, mas nem todos os casos têm resposta protetora e/ou duradoura”. A instituição prossegue: “Portanto, as pessoas que tiveram Covid-19 deverão receber a vacina”.

O discurso negacionista de Bolsonaro ganhou um ‘protagonista’ nos últimos meses. O ex-capitão repete insistentemente que seu nível de imunização contra a Covid-19 seria superior ao de vacinados. Como suposta prova, menciona frequentemente seus anticorpos IgG.

O presidente recorreu a esse expediente até em Nova York, onde abriu a 76ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, em setembro. Ao se encontrar em solo norte-americano com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, minimizou o fato de não ter se vacinado.

“Lá na frente ele [Boris Johnson] perguntou se eu tinha tomado a vacina. Falei que não. Falei que meu IgG estava lá em cima, 991. Eu falei ‘olha, vamos apostar uma caixa de uísque que meu IgG está maior que o teu que está vacinado?’. Ele sorriu e não quis apostar comigo“, declarou Bolsonaro em transmissão nas redes sociais ao retornar ao Brasil.

Para o colunista de CartaCapital Daniel Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris, os argumentos de Bolsonaro não se sustentam.

“O fato de ter tido [Covid] não garante que não pegue de novo. A gente não sabe de onde o Bolsonaro tirou essa história do IgG. Até porque não existe uma associação direta entre o nível do IgG e o grau de proteção. Não é porque o meu IgG deu 800 e o de fulano deu 400 que se eu tiver Covid o meu caso será mais leve. É falso, e é um elemento que ele usa para atrapalhar a estratégia vacinal”, avalia Dourado. “É intrigante, até, por que ele continua insistindo nisso”.

O especialista reforça que “não há segurança, do ponto de vista de estratégia de saúde pública, que nos permita confiar que as pessoas infectadas não vão se reinfectar e transmitir”.

“A gente não está falando de uma doença que se a pessoa pegou, fica imune, como o sarampo. Esse discurso do Bolsonaro é mais do mesmo, é a estratégia que ele adota desde o início: a história da imunidade de rebanho por contágio, o que é falso”.

Dourado ainda destaca que há diversos casos de pessoas que contraíram a Covid-19 e tempos depois se reinfectaram. “No primeiro caso, tiveram sintomas leves; na reinfecção, casos mais graves. O sujeito não vacinado está muitíssimo mais exposto a ter um caso mais grave na segunda infecção, até porque ele pode ter tido a primeira de uma variante como a Gama e, agora, da Delta. As vacinas, ao contrário, protegem contra a Delta”.

O médico infectologista Marcos Boulos reitera que os anticorpos fornecidos pela infecção não se comparam aos que são produzidos pela vacinação.

“Doenças respiratórias em geral, entre elas a Covid, não dão imunidade duradoura. Os anticorpos caem muito rapidamente. Tanto é que pessoas têm gripe pelo mesmo vírus todos os anos, mostrando que a proteção pela infecção é muito baixa”, explicou, em contato com CartaCapital. “Frequentemente, pessoas que tiveram voltam a ter a doença em menos de um ano”.

Por isso, Boulos se refere à vacinação de pessoas que contraíram a Covid como um upgrade. “Com a doença, você tem produção de anticorpos, que caem. Se você estimular com a vacina, esses anticorpos ficam mais elevados e mantêm a proteção por mais tempo. É necessário que as pessoas que tiveram Covid se vacinem”.

O infectologista ainda afirmou que, apesar de o IgG ser “o anticorpo de proteção, que mostra que você teve a infecção, ele não obrigatoriamente previne contra outras infecções”. Assim como “uma pessoa com infecção pelo HIV tem anticorpos anti-HIV muitos altos e continua com a infecção e com a doença”.

Apesar de Bolsonaro, a campanha de imunização avança no Brasil. O País atingiu na quarta 13 a marca de 100 milhões de pessoas totalmente vacinadas. Proporcionalmente, porém, o Brasil ocupa a 60ª posição, atrás inclusive de nações latino-americanas como Argentina, Equador, Chile, Uruguai, El Salvador e Cuba. Os dados são do consórcio de veículos de imprensa que monitora os dados da pandemia.

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