Política

Bolsonaro e ministros ignoraram vítimas e casos de coronavírus em reunião ministerial

Os presentes quase não citam as palavras ‘coronavírus’ e ‘vida’ e ignoram ‘respiradores’ e ‘leitos’, essenciais na sobrevivência à covid-19

Reunião com Vice-Presidente da República, Ministros e Presidentes de Bancos no dia 22 de abril. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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A liberação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, que causou um pandemônio no mundo político devido a falas que remetiam a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), incentivos a uma portaria que armasse a população, oportunismo para atropelar leis ambientais, entre outros, deixou claro que os presentes ministros pularam um assunto: a pandemia de coronavírus.

Não tinha como dizer que o cenário já não era dramático: há um mês, o Brasil registrava 45.757 casos de coronavírus, e já tinha 2.906 vidas perdidas para a doença. Naquele dia, fazia menos de uma semana que o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tinha pedido demissão de seu cargo após uma longa briga política que envolvia, entre outros motivos, a insistência do presidente Jair Bolsonaro em alterar os protocolos para o uso da cloroquina e sua presença em aglomerações e atos que, além de ignorarem as recomendações de distanciamento social, também traziam mensagens antidemocráticas.

No lugar de Mandetta, assumia o médico Nelson Teich – que participou de sua primeira coletiva naquela quarta, mas duraria menos de um mês no cargo.

A reunião tinha, quase que literalmente, todos os motivos do mundo para falar sobre a pandemia: os casos confirmados em todo o planeta ultrapassavam os 2.5 milhões, além das mais de 177 mil mortes, segundo a Universidade Johns Hopkins. Mas não foi o que aconteceu.

A reportagem buscou na transcrição oficial da reunião, também divulgada pelo STF, por termos-chave para medir quantas vezes o presidente e seus ministros e secretários falaram as vítimas da covid-19 no Brasil, a situação dos hospitais, as ações para a distribuição de EPI’s (equipamentos de proteção individual) para os estados, entre outros assuntos de caráter humanitário – um tom mais que necessário diante da pior tragédia humana dos últimos 100 anos.

De acordo com os arquivos liberados pelo Supremo, a reunião durou pouco mais de duas horas. Nesse período, no entanto, os presentes se ocuparam mais sobre o cenário econômico futuro do governo, recuperação de empresas, embates políticos e reiterações de visões ideológicas sem contextualização com a pandemia.

Para acompanhar as frases completas do que os ministros falavam, confira a íntegra da transcrição da reunião ministerial. De acordo com a decisão do ministro Celso de Mello, as partes censuradas dizem respeito a menções feitas a outras nações. Para procurar um termo, tecle “CTRL+F” no teclado de seu computador.

Palavra-chave: “coronavírus” – oito menções

01: Walter Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, cita o vírus para explicar sobre o plano econômico Pró-Brasil: “É … pra retomada do crescimento socioeconômico em resposta aos impactos relacionados ao coronavírus, tá?”

02: Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, diz o número de pessoas da Caixa que tiveram o vírus: “Poxa, a gente tá com trinta mil pessoas. Eu passo ligando. Quarenta e cinco bra… é… pessoas na Caixa tiveram coronavírus.”

03. Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, fala sobre sua intenção de colocar o Brasil como um dos países que irão definir “a nova ordem mundial”: “É, outro dia a … na conversa do presidente com o primeiro ministro da Índia, o indiano disse que vai ser tão diferente o pós-coronavírus do pré quanto pós Segunda-Guerra do pré.”

04. Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, menciona o vírus ao descobrir que existem ucranianos no Brasil: “Quando a gente foi buscar os povos tradicionais agora pra gente construir o enfrentamento ao coronavírus, nós descobrimos, ministros, que nós temos um milhão e trezentos mil ucranianos no Brasil e njnguém [ninguém] nunca falou de ucranianos pra nós…”

05 e 06: Damares Alves novamente, falando, agora, sobre aborto e um projeto inexistente de aborto para quem teve coronavírus. “Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta, e lá tava a questão de… as mulheres que são vítima do zika vírus vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral?”

07: Damares Alves outra vez, agora falando sobre a resposta do governo à chegada da epidemia nas comunidades indígenas: “A gente não precisa reinventar muita coisa não. E eu quero citar aqui o exemplo da política indigenista como este governo estava construindo. Todo mundo começou a dizer, a esquerda começou a falar que o coronavírus iria dizimar os povos indígenas no Brasil.”

08: Tereza Cristina, ministra da Agricultura, citou o nome do vírus uma vez ao comentar sobre a reunião G-20 da Agricultura: “o dia do G20 da agricultura. Tem uma nova ordem, vai ter depois do coronavírus, e muitos países, é… vão, é… colocar regras pra ter estoque novamente”, disse.

Palavra-chave: “casos” – nenhuma menção

Palavra-chave: “covid” – sete menções

01 e 02: Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, expõe que a cobertura extensa da mídia sobre a pandemia pode ser uma oportunidade para alterar, sem atenção pública, decretos e leis ambientais na Amazônia: “Nós temos a possibilidade nesse momento que a atenção da imprensa tá voltada exclusiva … quase que exclusivamente pro COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado, mas não é isso que eu quero falar.” e “Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas.”

03 e 04: Jair Bolsonaro, presidente da República, ao falar sobre a morte de um patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal por covid-19. Segundo a transcrição, Bolsonaro fala “codiv” e não “covid” quando continua o assunto: “Ontem eu liguei pro Diretor-Geral da Polícia Rodoviária Federal. Chegou ao meu conhecimento, urna [uma] nota, que era dele, sobre o passamento de um patrulheiro. E ele enfatizou que era COVID-19. Eu liguei pra ele.” e “Mas ali na nota dele só saiu CODIV-19. Então vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar CODIV- 19, mas bota também tinha fibrose nu… montão de coisa, eu não entendo desse negócio não.”

05, 06 e 07: Nelson Teich, ex-ministro da Saúde, sobre possíveis problemas financeiros futuros de hospitais que estão há tempos sem atender outros casos senão os de suspeita de covid-19: “E a gente tem um problema adicional que a gente tem que tomar cuidado, que é o seguinte, como você tem os hospitais com pouca… você tem muita gente falando de COVID, mas os hospitais estão diminuindo muito o atendimento.”

“O que que tá acontecendo hoje? Vamos botar em números hoje, que a gente tenha quatro milhões de pessoas hoje com a COVID. Brasil hoje tem duzentos e doze milhões de pessoas. Tem duzentos e oito milhões que tão, que não estão … não tão tendo atenção necessária.” e “ai você só vai transferir o problema de medo. Que vai ser o medo da COVID pro medo da não COVID.”

Palavra-chave: “pandemia” – uma menção

01: Damares Alves diz que o mundo será diferente depois da pandemia: “Nós estamos sabendo, e a gente tá falando o tempo todo, que nós não seremos mais os mesmo depois dessa pandemia.”

Palavra-chave: “vida” – quatro menções

No total, a palavra aparece 23 vezes, mas “dentro” de outras palavras, como “envolvida”, “dúvida”, “produtividade”, “efetividade”, “endividamento”, “engravida”, “resolvidas”, “atividade”,  “convidar” e “duvidavam”. Com o contexto de vida humana, são feitos os seguintes comentários:

01: Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça, comenta sobre incluir indicadores de combate à corrupção e o crime organizado, que estavam sob seu comando, na pauta do governo: “Tem que apontar também que … o foi uma vitória do governo, do presidente, ano passado houve uma queda expressiva desses principais indicadores criminais. Isso embora seja mais vinculado com a questão da vida e segurança das pessoas, também é um fator importante aí pro investimento econômico, pra atrair, melhorar o ambiente econômico.”

02: Damares Alves novamente falando sobre aborto. “Quero te lembrar ministro, que tá chegando agora, este governo é um governo próvida, um governo pró-família. Então, por favor. E aí quando a gente fala de valores,
ministro, eu quero dizer que nós estávamos sim no caminho certo.”

03: Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, sobre vidas de profissionais de saúde: “Visando duas coisas, eu já vou terminar, que é primeiro melhorar essa logística do profissional de saúde, que sempre tem um hotel próximo ao hospital… aos hospitais e também a preservação da família desses profissionais, mostrando, obviamente, a sensibilidade do presidente Jair Bolsonaro na preocupação com essas vidas desses profissionais. Obrigado ministro.”

04: Jair Bolsonaro ao mencionar que a liberdade é mais importante que a vida, em sua visão. “Então, pessoal, por favor, se preocupe que o de há mais importante, mais importante que a vida de cada um de vocês, que é a sua liberdade. Que homem preso não vale porra nenhuma.”

Em outra menção de Bolsonaro, ele diz que a “OAB da vida” estava “enchendo o saco” do Supremo para abrir processo de impeachment contra ele. Paulo Guedes, ministro da Economia, também menciona a palavra ao dizer que pessoas em cassinos saem “feliz da vida” após beberem e apostarem dinheiro.

Jair Bolsonaro na reunião do dia 22 de abril, que foi liberada na íntegra após ser apontada como prova de que o presidente tentou interferir politicamente na Polícia Federal. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Palavra-chave: “morte” – uma menção

01: Abraham Weintraub, ministro da Educação, diz que recebeu ameaças de mortes na universidade em que lecionava: “Tem três anos que, através do Onyx, eu conheci o presidente. Nesses três anos eu não pedi uma única conselho, não tentei promover minha carreira. Me ferrei, na fisica. Ameaça de morte na universidade.”

Palavras como “mortalidade” e “mortandade” foram citadas respectivamente por Nelson Teich (“se a gente olhar o Brasil hoje, ele é um dos melhores países em número em relação a mortalidade”) e por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional (“Se vamos gastar seiscentos bilhões de reais para resolver uma situação que
é emergencial e todos reconhecemos que é necessária e darmos segurança à população, no caso alimentar, para evitarmos o caos, para diminuirmos a mortandade das empresas, muito bem. Tá correto, essa é a boa direção.”)

Palavra-chave: “quarentena” – nenhuma menção

Palavra-chave: “isolamento” – duas menções

01. Walter Braga Netto comenta sobre um momento de saída do isolamento: “Porque se eu tiver os hospitais funcionando, eu vou ter os pacientes tratados, eu não tenho a sensação da crise, o medo melhora e o restante pode
entrar. E a terceira coisa é a gente deixar claro um programa de saída do isolamento, do distanciamento. Não é que vá sair amanhã, mas a gente tem que ter um planejamento.”

02: Jair Bolsonaro diz que quem quebra isolamento não dá um “péssimo exemplo”: “Pra vir uns merda pra falar aí, né? Uns merda de sempre. “A, o cara rompeu o isolamento. Tá dando um péssimo exemplo.”. Tá … péssimo
exemplo é o cacete, pô!”

Palavra-chave: “EPI”: nenhuma menção

Palavras-chave: “leito”: nenhuma menção

Palavra-chave: “respirador”: nenhuma menção

Palavras-chave: “hospital” e “hospitais” – dez menções

01 a 08: Nelson Teich falando sobre a sobrecarga do sistema de saúde: “O que assusta é você ver que o hospital não consegue atender, é gente do frigorífico, é gente que tá abrindo cova em algum lugar pra enterrar, e isso traz medo.”

E uma sequência de repetições do termo na mesma argumentação – já mencionada anteriormente quando o ministro tratou de problemas financeiros nos hospitais:

“Enquanto a gente não conseguir controlar a percepção que a gente hoje tem condição de cuidar das pessoas, vai ser difícil, né? E o problema da doença é que cê pega um sistema que se você falar em eficiência, os hospitais tem que ser eficientes. Então quando você fala em eficiência, você vai quase no limite do cuidado. Cê não tem… cê não tem sobra, cê não tem gordura. Quando você pega uma doença que chega, que é muita gente ao mesmo tempo, você não consegue ter agilidade pra preparar o sistema para cuidar dela.” A fala posterior é a mesma da palavra “covid”.

09: Marcelo Álvaro Antônio: mesma fala da palavra “vida”.

10: Walter Braga Netto: mesma fala da palavra “isolamento”

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