Política

Bancadas do povo

Indígenas, negros, LGBTs e até mesmo os sem-terra se articulam para ampliar a representação no Legislativo

Em ação. Sônia Guajajara está empenhada na criação de “bancadas do cocar“ pelo País afora. “Queremos mudar a fotografia do poder“, explica a socióloga Vilma Reis - Imagem: Leopoldo Silva/Ag.Senado e Redes sociais
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Apontado como a eleição mais importante da história recente do Brasil, o pleito de outubro pode representar também um marco para as minorias, a encampar um movimento para ampliar as suas bancadas no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas. Indígenas, negros, população LGBTQIA+ e até mesmo o MST trabalham de forma organizada para eleger seus próprios pares. Em fevereiro deste ano, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil publicou a carta ­Aldear a Política, um documento estimulando os indígenas a se lançarem candidatos para formar as bancadas do cocar pelo País afora. O mesmo fez o movimento Coalização Negra por Direitos ao criar o Quilombo nos Parlamentos, projeto que deve lançar mais de cem candidatos negros nas eleições deste ano. Entre os gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais, ao menos 254 deles estão cadastrados na plataforma VoteLGBT, apresentando-se como candidatos da comunidade. Pelos sem-terra, serão 16 candidaturas em 14 unidades da federação que pretendem formar a bancada da agricultura familiar, incluindo três deputados federais que vão para a reeleição e um candidato a governador, o assentado petista Edgar Pretto, no Rio Grande do Sul.

“Os direitos ancestrais são constantemente atacados e lutamos contra o genocídio indígena há mais de 500 anos. Desde 2019, nenhuma Terra Indígena foi declarada, enfrentamos ataques e assassinatos, remédios não chegam e os povos isolados não estão sendo protegidos”, destaca Dinamam Tuxá, da Coordenação Executiva da Apib. “Queremos senadores, governadores, deputados estaduais e federais e, no futuro, vereadores, prefeitos e um presidente indígena. Chega de bancada do boi, da bala e da Bíblia. Precisamos ter uma bancada indígena forte.” Em 2018, foram eleitos 237 indígenas nas eleições municipais. Agora, eles pretendem dar nas urnas a resposta aos constantes ataques que sofrem, elegendo seus próprios representantes.

Candidata a vice-presidente da República nas eleições de 2018, Sônia Guajajara é uma das principais apostas para formar a bancada do cocar na Câmara Federal. Ela é candidata pelo PSOL de São Paulo. “Os povos indígenas nunca foram prioridade de governo algum. Nossas demandas sempre encontraram entraves, não apenas pela falta de representatividade, mas, principalmente, devido à pressão exercida por setores com nenhum apreço pelo meio ambiente e com interesses muito claros em nossos territórios, como é o caso do agronegócio”, diz Guajajara. “Com a eleição de Bolsonaro e seu governo declaradamente anti-indígena e antidemocrático, a situação alcançou outro patamar e esses entraves têm sido institucionalizados como políticas públicas. Diante desse cenário, é importante e urgente garantir representantes indígenas que defendam os nossos direitos. Não basta mais sermos representados, queremos ser representantes.” De fato, a deputada Joenia Wapichana, da Rede, é a única indígena eleita deputada federal da história do Brasil.

“Não basta mais sermos representados, queremos ser representantes”, reivindica Guajajara

Estado que proporcionalmente concentra a maior população negra do País (84%), a Bahia nunca elegeu um mandatário dessa comunidade e apenas há quatro anos deu a vitória à primeira e única deputada estadual negra do estado, Olívia Santana, do PCdoB. Em São Paulo, o cenário não é diferente. Até hoje, apenas quatro negras foram eleitas para a Assembleia Legislativa, três delas há quatro anos, no pleito de 2018. Na Câmara Federal, a discrepância também é grande: dos 513 deputados, 125 se declaram pardos e pretos, menos de 25% dos assentos, numa sociedade onde 56% dos habitantes se declaram negros, segundo dados de 2019 do IBGE. “O mundo inteiro olha para o Brasil e pensa como é possível, num país de maioria preta e parda, não ver a população negra representada no poder político. Isso é um escândalo internacional. O Brasil tem de sair desse constrangimento”, comenta a socióloga Vilma Reis, candidata a deputada federal pelo PT baiano e uma das representantes do Quilombo nos Parlamentos. Em eleições passadas, o movimento negro apoiou candidaturas brancas comprometidas com a causa antirracista, mas agora resolveu dar um passo adiante e também eleger seus próprios representantes.

“Do ponto de vista da disputa semiótica e de sermos espelhos para a nossa comunidade, é fundamental que a gente olhe para uma liderança negra e vote nela. Já votamos bastante nos nossos companheiros, parceiros de lutas, homens e mulheres brancos. Agora, vamos mudar a fotografia do poder. Sem paridade racial e de gênero, não há democracia no Brasil. É preciso ter coragem de desobedecer ao racismo, ao patriarcado e ao poder do capital. Não podemos mais entregar o poder de representação da gente para outros grupos”, pontua Reis. “Nesta eleição, mais do que em outras, existe uma luta pela representação de pessoas negras nos legislativos, especialmente de mulheres. É uma necessidade histórica. O maior segmento populacional isolado são as mulheres negras, 27% a 29%, e, apesar disso, a representação delas nos espaços de poder é baixíssima”, completa Paula Nunes, do PSOL, covereadora por São Paulo e candidata numa chapa coletiva a uma vaga na Assembleia Legislativa.

Visões. “Devemos superar os estigmas naturalizados“, afirma a vereadora Linda Brasil. “Vamos fazer frente à bancada ruralista“, promete Rosa Amorim, do MST – Imagem: Redes sociais e Gilton Rosas/Câmara Municipal de Aracajú

Antônio Queiroz, analista político e consultor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), prevê um aumento da bancada negra no Congresso Nacional, assim como a feminina, considerando que a legislação eleitoral obriga os partidos a dedicarem uma cota mínima de 30% para esses segmentos na disputa e, principalmente, porque, ao elegeram negros e mulheres na próxima legislatura, as legendas terão um bônus no repasse dos fundos eleitoral e partidário. Esses votos serão contados em dobro no cálculo para a distribuição das verbas às legendas. “Os partidos são obrigados a canalizar parte dos recursos para essas candidaturas e abrir espaço no programa de rádio e televisão, e ainda há a vantagem de contar em dobro para os fundos eleitoral e partidário ao eleger negros e mulheres”, diz. “É muito dinheiro.”

Queiroz entende que os indígenas podem ser incluídos na cota de negros e acredita em um crescimento na casa dos 20% a 30% da bancada dos movimentos sociais na Câmara, o que ainda fica aquém da representatividade que essas forças têm na sociedade. “Há um estímulo para essas candidaturas e um apelo internacional muito forte. Os partidos vão querer favorecer postulantes negros e mulheres, buscando nomes com viabilidade eleitoral. A candidatura laranja não interessa mais, porque as legendas têm de sobreviver politicamente, têm de atingir a cláusula de barreira, e converter voto em mandato para sobreviver,” avalia. Procurador Jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja, Eliésio Marubo queixa-se da dificuldade para viabilizar candidaturas indígenas diante da estrutura dos políticos profissionais e das manobras partidárias, que, muitas vezes, não dão espaço para os povos originários. “Diferentemente dos políticos tradicionais, nossos parentes não têm mobilidade financeira para ir aos lugares e dialogar com os indígenas. Além disso, os partidos já fazem aquela prévia de contagem de voto visando eleger os políticos mais conhecidos, os que já têm mandato.”

Na população LGBTQIA+, o debate sobre o potencial e a necessidade eleitoral da comunidade começou há muito tempo, mas se intensificou de 2016 para cá, com o avanço do bolsonarismo e da violência contra essa população. Em junho passado, a Parada Gay em São Paulo, maior evento político-cultural do setor, trouxe como tema “Vote com Orgulho – Por Uma Política Que Representa”, sugerindo às dezenas de milhares de participantes do ato a escolherem candidaturas lésbicas, gays, bissexuais e trans nas eleições deste ano. Secretária Nacional LGBTSocialista do PSB, Thatyane Araújo, mulher trans e presidente licenciada da RedeTrans, reforça a necessidade de ter representantes no Parlamento. “Neste momento de retomada da democracia, é importante que as pessoas LGBTQIA+ contribuam a partir da ocupação dos espaços legislativos e de gestão. Já provamos a nossa competência e podemos ir ainda mais longe”, salienta Araújo, candidata a deputada federal por Sergipe.

“Precisamos criar políticas públicas a partir do nosso olhar”, explica Linda Brasil

Outra mulher trans candidata em Sergipe é Linda Brasil, do PSOL. Ela é vereadora em Aracaju e tenta, agora, uma vaga na Assembleia Legislativa. “A gente quer ser protagonista das políticas públicas, para que os projetos sejam construídos a partir do nosso olhar, e enfrentar a perseguição às nossas pautas”, afirma, chamando atenção para o fato de que ser LGBTQIA+ não é suficiente para defender as pautas da comunidade. “Não adianta a gente ocupar esses espaços e reproduzir modelos que não nos servem. Nem se eleger e não ter a consciência do nosso papel transformador na sociedade. Não devemos ser candidatas para servir de capacho ou laranja para esses políticos que sempre estiveram no poder. É o nosso lugar de fala, onde temos propriedade de discutir e defender as nossas pautas. A gente viveu e vive muitos estigmas, estereótipos, perseguições que foram naturalizados. Temos de desconstruir isso.”

Com apenas 25 anos, Rosa Amorim desponta como uma liderança do MST e é uma das apostas dos sem-terra para fazer crescer a bancada da agricultura familiar. Ela nasceu e foi criada em um assentamento do movimento e se arrisca a uma das 49 vagas para a Assembleia Legislativa de Pernambuco. “O MST sempre se pautou pela organização do povo, da luta social e ideológica e naquilo que para nós é essencial: ocupar o latifúndio improdutivo. Mas, por conta da conjuntura política, com o avanço do bolsonarismo, a gente achou que seria a hora e a vez de entrar nessa outra dimensão, que é a luta institucional. Vamos fazer frente à bancada ruralista e aos grupos extremistas religiosos no Congresso Nacional e nas Assembleias estaduais. Queremos combater o projeto conservador, machista e racista”, dispara. Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST, segue na mesma toada: “Vamos aumentar nossa representação na Câmara e nos articular com as bancadas indígena e negra para fazer uma grande corrente do povo brasileiro na defesa da produção de alimentos saudáveis e das questões ambientais fundamentais nesse processo”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bancadas do povo “

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