Justiça

Audiência de custódia: entenda a medida que opõe Bolsonaro e Moro

Prática é demonizada pelo presidente e seus filhos, mas está inclusa no projeto anticrime de Sérgio Moro

Foto: Ricardo Lou/TJ-SP
Apoie Siga-nos no

Novembro de 2018 na cidade do Rio de Janeiro. Uma mulher de 26 anos é presa em flagrante portando drogas no Aeroporto Santos Dumont. Ela era uma “mula”, como é chamado alguém que transporta drogas de um local para outro.

Ela seria presa, por ter sido pega em flagrante, e aguardaria o julgamento por tráfico de drogas dentro de uma prisão. Isso se não fosse um detalhe: a carioca estava grávida de cinco meses. Por estar nessa condição, o defensor público Eduardo Newton conseguiu que a acusada aguardasse o julgamento de casa.

Newton explica que o argumento utilizado por ele foi um entendimento do Supremo, divulgado em fevereiro de 2018,  que permite a prisão domiciliar para mulheres que estão gestantes ou são mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência. A acusada só conseguiu a prisão domiciliar porque passou por uma audiência de custódia.

E o defensor acredita que ser contra essa medida é ter uma mentalidade autoritária. “Apesar de tanta resistência de diversos setores da sociedade, até mesmo de grupos da comunidade jurídica, não resta dúvida de que a audiência de custódia é um instrumento essencial para se questionar a política do grande encarceramento e, ainda, para a prevenção/repressão à tortura. Quem a critica ou não sabe o que é o instituto ou então possui uma mentalidade autoritária”, conclui.

O que é uma audiência de custódia?

A audiência de custódia funciona da seguinte maneira: a pessoa, presa em flagrante, precisa ser levada a uma autoridade judicial até 24 horas depois da autuação. Além da presença de um juiz, é necessário que estejam no ambiente o defensor do acusado e um promotor do Ministério Público, representando o Estado.

No julgamento, o promotor questiona o acusado, o advogado apresenta a sua defesa e o juiz avalia se o detido aguarda julgamento preso ou em liberdade. Além disso, o magistrado examina também a questão de maus tratos por parte da polícia. Caso o preso tenha passado por torturas ou violações no ato da prisão, é nesse momento que ele denuncia ao juiz e garante uma defesa por parte do Estado.

A prática, que acontece em países como Estados Unidos e Alemanha, entrou em vigor no Brasil em 2016. Desde 2014 se debatia a melhor maneira de utilizar a audiência de custódia no país, mas apenas três anos atrás o Conselho Nacional de Justiça determinou a adoção. Além de todos os tribunais estaduais, os TRFs e a Justiça Militar da União aderiram ao projeto.

A previsão legal de um preso ter o direito de se encontrar com uma autoridade judicial no ato de sua prisão está prevista em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o  Pacto de São Jose da Costa Rica e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Prática positiva para o sistema prisional

Desde que foi colocada em prática, a audiência de custódia tem produzido efeitos positivos no sistema prisional brasileiro. Dados atualizados até junho de 2017 pelo CNJ revelam que do total de audiências realizadas no país (258.485), mais de 40% resultaram em liberdade provisória. Nos Estados do Amazonas Mato Grosso, Santa Catarina e no Distrito Federal, em mais de 50% dos casos os presos conseguiram a liberdade provisória. Amazonas, Alagoas e Mato Grosso lideram no ranking de alegações dos presos de violência no ato da prisão.

O Brasil vive uma crise no sistema penitenciário motivada, entre outros fatores, pela superlotação carcerária. Em junho de 2016, última atualização do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), existiam 726.712 pessoas presas no Brasil, o que representa uma taxa de ocupação de 197% em presídios e carceragens. Segundo o levantamento, há um déficit total de 358.663 vagas nas unidades prisionais.

Outro grande problema brasileiro é a demora para o julgamento final. Cerca de 40,2% do total de encarcerados ainda não eram condenados em 2016 (o que dá 292.450 pessoas). Para piorar, 115 mil presos provisórios aguardavam julgamento havia mais de 90 dias. Com a audiência de custódia, as chances de uma pessoa estar presa injustamente diminuem.

Mesmo com ótimos resultados, apenas a audiência de custódia não resolve o problema do sistema carcerário brasileiro. Ela precisaria ser acompanhada de outras medidas que visam a melhoria da política criminal. É o que explica o juiz da vara criminal de Joinville, João Marcos Buch. O jurista conta que a medida ajudou no combate à superlotação das cadeias e nas prisões ilegais, mas a falta de política de penas alternativas faz que em alguns casos o juiz acabe optando por manter a prisão.

“Em um primeiro momento, a audiência de custódia serviu para diminuir o número de prisões preventivas. Porém, considerando a ausência de investimento pelo estado nas alternativas penais, com centrais de penas e medidas alternativas estruturadas, redes de atenção social e de saúde, muitas vezes o juiz se vê na contingência de manter a prisão porque a soltura implicaria em retorno para a margem”, explica o magistrado.

Buch defende que o Poder Executivo invista em alternativas penais e apresente esses instrumentos ao sistema de justiça criminal. Essas alternativas penais podem ser monitoramento eletrônico, trabalho voluntário à comunidade, regime semi-aberto para trabalho entre outras medidas que seriam opções para uma ressocialização. “A questão é que todas essas medidas, quando aplicadas, precisam de fiscalização e isso somente através do fomento e investimento pelo governo”, explica Buch.

Uma coisa é o ideal, outra é a realidade. Pelo contexto político no país, o jurista não acredita que essas políticas serão criadas pelo poder executivo. “Os indicativos são de super encarceramento, tanto que o número de presos aumentou muito neste ano, numa curva ascendente bastante forte”, conclui Buch.

Família Bolsonaro condena a prática

E não é para menos. Mesmo com todos os benefícios para a Justiça, comprovados em números, Jair Bolsonaro condena a audiência de custódia. Antes de se tornar presidente, Bolsonaro fez diversos posts em suas redes sociais dizendo que a medida vitimiza o bandido e julga o policial. Em nenhum destes posts o pesselista utilizou argumentos jurídicos ou números baseados em pesquisas.

Mesmo estando na Presidência, Bolsonaro continuou se posicionando contra a audiência de custódia. Em julho deste ano, o presidente postou em seus redes que pretende acabar com “políticas erradas das últimas décadas, a começar pela audiência de custódia e desarmamento do cidadão.”

Os filhos do presidente acompanham a ideia do pai. Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo Rio de Janeiro, chegou a questionar a legitimidade da ONU e do CNJ ao criticar a medida. “Você já votou em alguém da ONU ou do CNJ? Qual a legitimidade que estas pessoas acham que têm para fazer esse tipo de coisa?”, questionou o parlamentar.

O mais polêmico dos filhos, o vereador da cidade do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro, também atacou publicamente a medida. Em junho deste ano, o 03 da família postou em seu Twitter um vídeo de presos saindo da cadeia com a seguinte legenda: “Assassinos de policiais militares são postos em liberdade poucas horas após o crime. Lamentavelmente isso é Brasil!”, disse.

No vídeo, não há prova alguma de que fossem assassinos de policiais militares.

Moro não concorda com o presidente

As críticas mostram que nem Bolsonaro nem os filhos leram o projeto “anticrime” apresentado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro. Na proposta está a audiência de custódia como forma de lei. Hoje, a medida é feita baseada em uma resolução do CNJ, algo que pode ser revogado.

Ao apresentar a audiência de custódia como forma de lei, Moro altera o período em que ela pode acontecer. Em vez das 24 horas, o ministro propõe um prazo máximo de 72 horas para que o acusado seja apresentado a um juiz. O promotor do Ministério Público da Bahia, Elmir Duclerc Ramalho Junior, é contra a mudança.

Para o jurista, esse tempo cria dificuldade para a defesa, principalmente na fiscalização a violações de direitos humanos. “As 72 horas desfavorecem o processo e podem significar um risco muito grande pela liberdade de alguém que foi preso pela polícia. Além disso, cria-se dificuldades para a defesa fiscalizar violações do acusado”, afirma.

Moro quer permitir ainda que a audiência ocorra em forma de videoconferência. O promotor também é contra. “A questão do prazo para a apresentação e a videoconferência dificultam a fiscalização da defesa e desprotege o acusado, que tem que responder se foi torturado talvez ao lado de seu torturador”, explica.

“Anticrime”

O pacote anticrime de Moro está sendo analisado por um grupo de trabalho criado na Câmara dos Deputados.  Se aprovado, a matéria segue para a votação no plenário da casa e depois para o Senado federal.

O projeto altera 14 leis, incluindo o Código Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos e o Código Eleitoral. Segundo o ministério, a intenção é combater a corrupção, os crimes violentos e as facções criminosas.

Um dos pontos polêmicos na proposta do ministro é a permissão para policial matar em serviço.  O texto prevê que um agente policial ou de segurança pública que agiu em legítima defesa poderá ter uma eventual condenação reduzida à metade ou não aplicada se “o excesso cometido decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

O texto também altera a definição de situação de legítima defesa de um agente para: “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”; e “o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.