Política

Após ignorar restrição a operações, Rio tem alta de mortes causadas por policiais na pandemia

Estudo mostra que proibição de operações fez estado ter 1ª queda de mortes desde 2013. Supremo prepara audiência pública para debater o tema

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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A proibição das operações policiais no Rio de Janeiro durante a epidemia de Covid-19 gerou a primeira queda no número de mortes causadas por agentes públicos desde 2013. É o que aponta um levantamento publicado pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF) na segunda-feira 06.

Às vésperas de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal para traçar os planos de diminuição de letalidade policial no estado, o grupo destaca, no entanto, “sistemáticas violações” à ADPF 635, ação concedida pelo ministro Edson Fachin e posteriormente corroborada pela maioria da Corte no meio do ano passado.

A estimativa é que 288 vidas foram poupadas em 2020 pela diminuição observada. De junho a setembro, a média mensal de vítimas foi de 37,5, inferior à observada ao longo de 2020 (90,1) e à registrada entre 2007 e 2020 (74,2).

Com a queda de 69% no número de operações policiais ao longo de 2020 (e ao contrário do que previam críticos), o número de crimes contra a vida e o patrimônio também caiu. Roubos tiveram redução de 39%, ao passo que crimes como homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte, além de morte por intervenção de agente do Estado, caíram 24% em comparação com 2019.

A partir de outubro, o cenário mudou. O número de operações sem justificativas “absolutamente excepcionais”, as únicas autorizadas pelo Supremo, passou a voltar a causar pânico nas periferias. Com isso, a porcentagem de mortes por intervenções policiais no total dos crimes contra a vida, que saltou de 9% em junho para 44% em fevereiro de 2021. A média mensal de vítimas passou de 37,5 para 107.

“Se as operações policiais induzem um aumento no número de mortes e não contribuem para a redução da ocorrência de crimes, não há justificativa para elas terem se transformado em uma constante do dia a dia do trabalho policial, em vez de, por princípio, serem o último recurso das ações policiais”, diz o relatório [leia a íntegra].

(Imagem: GENI/UFF)

Frente aos dados, o pesquisador Daniel Hirata, um dos autores do relatório e professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da UFF, afirma que não há quaisquer justificativas técnicas ou de segurança pública para a normalização das grandes operações policiais no Rio.

Essas operações concentram os maiores índices de letalidade policial. E não garantem, afirma o pesquisador, diminuição da criminalidade no estado. A grande questão, entretanto, é a maneira que elas são apresentadas à sociedade pelos poder público: como a única alternativa.

“Há um estímulo, que vem já de muito tempo e é potencializado pelo bolsonarismo e pela extrema-direita”, afirma Hirata, que complementa. “Parte da população não percebe que a brutalidade é contraproducente. Há por trás disso um mercado poderoso de lobistas de armas, de ganhos políticos e de questões por fora de um entendimento pensar a área de segurança pública associada a direitos.”

Em relação à retomada indevida das operações , o professor destaca o papel do governador interino do Rio, Cláudio Castro (PSC) que, em outubro, estava no segundo mês de gestão. “Castro fala menos que o Witzel [afastado por um processo de impeachment]. Você não o vê saindo de um helicóptero comemorando uma morte na Ponte Rio-Niterói e nem defendendo abertamente política de tiro na cabecinha, mas ele mostrou mais letal que Witzel, na prática”, analisa. 

Um exemplo é como pensa o secretário da Polícia Civil do Rio escolhido por Castro, o delegado Allan Turnowski. Em entrevista ao jornal O Globo, Turnowski afirmou que, se pudesse, “usaria tanques, e não blindados” nas favelas cariocas.

“Em vez de ajuda, tiroteios”

Com a retomada das operações, o PSB, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e movimentos da sociedade civil voltaram a oferecer ao Supremo denúncias de violação à ADPF 635.

Na época da liminar, o Brasil havia enterrado há pouco mais de um mês mais um jovem negro vítima da violência policial — João Pedro Matos, de 14 anos, morto com um tiro na barriga durante uma operação. Os protestos locais refletiam também a onda de indignação geradas pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.

Não faltaram exemplos para ilustrar os efeitos nefastos da retomada das operações. Em 02 de fevereiro de 2021, Ana Clara Machado, de 5 anos, foi morta durante uma ação da PM em uma comunidade de Niterói. Foi atingida enquanto brincava com o primo em frente de casa. Relatos de truculência, como o do repórter cinematográfico Tandy Firmino, que teve a casa invadida durante ação no Morro Santa Marta, também voltaram a fazer parte da rotina nas favelas cariocas.

“Estamos em uma segunda onda da epidemia da Covid e mais uma vez as forças policiais não fazem o que delas se espera”, lamenta Daniel Hirata. “Em vez de apoio à ajuda humanitária, elas estão produzindo tiroteios que interrompem a distribuição de cestas básicas.”

No Rio de Janeiro de Castro e no Brasil de Bolsonaro, as ações judiciais se tornam a alternativa às organizações de familiares de vítimas, de grupos antirracistas e da comunidade acadêmica e civil para bater de frente contra o aparato estatal que mata mais que guerras civis. Muitas dessas organizações falarão na audiência pública do Supremo, marcada para acontecer entre os dias 16 e 19 de abril.

É muito impressionante que no meio de todo esse cenário adverso, a ADPF tenha acontecido em 2020. Nesse clima de ‘amor à farda’ e autoritarismo, ainda assim conseguiu-se conquistar o que me parece a mais importante vitória dos últimos anos para aqueles que defendem a vida.”

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