Política

A tramoia das urnas

Com apoio de Walter Delgatti e dos militares, Bolsonaro parece disposto a patrocinar a violação do sistema eleitoral

A deputada Zambelli agora estende o tapete vermelho ao hacker que desmoralizou Moro, seu padrinho de casamento. O tempora, o mores - Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress e Marcos Corrêa/PR
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Jair Bolsonaro passou raiva na posse de Alexandre de Moraes na presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Ouviu visivelmente contrariado o ministro chamar as urnas eletrônicas de “orgulho nacional” e arrancar aplausos da plateia. Deve ter se arrependido de aceitar o convite para a festa, entregue a ele na noite da quarta-feira 10. Na manhã do dia em que abrira o gabinete a Moraes, o capitão recebera logo cedo, no Palácio da Alvorada, Walter Delgatti Neto, o hacker mais famoso do Brasil. Conhecido como “vermelho”, em razão da barba e do cabelo ruivos, o responsável por expor o concubinato do então juiz Sergio Moro com os procuradores da Operação Lava Jato de Curitiba estava sumido. No fim de julho, tinha declarado voto em Lula. Por que diabos aceitou falar cerca de duas horas com o presidente?

Participar de uma conspiração contra as urnas menosprezadas por Bolsonaro e exaltadas por Moraes é um bom palpite. Há pistas para suspeitar que o candidato à reeleição parece disposto a violar, com auxílio do Exército, o sistema eleitoral do TSE, para “provar” que as urnas são fraudáveis e, assim, melar a eleição. Melar o jogo é o que querem certos endinheirados bolsonaristas. Em um grupo de ­WhatsApp criado no ano passado com o nome de “Empresários & Política”, circulam mensagens que dizem ser melhor um “golpe de Estado” do que a volta de Lula, conforme revelado pelo jornal Metrópoles na quarta-feira 17. José Koury, dono do shopping fluminense Barra World, defende a quartelada. Para André Tissot, do Grupo ­Sierra, “o golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo”. Marco Aurélio Raymundo, das lojas Mormaii, acredita que “golpe foi soltar o presidiário”, em referência a Lula. Luciano Hang, o véio da Havan, acha que reeleger Bolsonaro porá fim a “vagabundos”. Ele é um dos alvos de investigações em curso no Supremo Tribunal Federal a respeito das milícias digitais. Moraes, o relator dos inquéritos, está convencido de que os milicianos são uma quadrilha formada, entre outros, por um núcleo financiador. Tomará providências contra os engravatados golpistas, como pediu o senador Randolfe Rodrigues?

O HACKER DE ARARAQUARA, RESPONSÁVEL POR REVELAR AS CONVERSAS DE MORO E DOS PROCURADORES, SENTE-SE MENOSPREZADO POR LULA

De volta a Delgatti e às pistas sobre o desejo de violar o sistema de votação e apuração do TSE. O hacker foi levado a Bolsonaro pela deputada Carla Zambelli, do PL (a propósito, um dos padrinhos do casamento da parlamentar foi Moro, desmascarado pelo novo amigo). Um carro enviado por Zambelli pegou ­Delgatti em ­Ribeirão Preto, em 7 de agosto, um domingo, e o levou a Brasília, viagem de 700 quilômetros. Dois dias depois, o ­hacker e a deputada reuniram-se com Valdemar Costa Neto, o presidente do PL, na sede da sigla. Foi na véspera do encontro de Delgatti com o capitão. Na conversa no QG do partido, falou-se da segurança das urnas eletrônicas, segundo uma testemunha, o advogado Ariovaldo Moreira, que até aquela data defendia o hacker.

Ao jornal GGN, Moreira disse que ­Delgatti “entende que é possível fraudar as urnas”. Estas não estão ligadas à ­internet, seria preciso invadi-las fisicamente, por meio de um pen drive, por exemplo. Um trabalho monumental, pois a eleição deste ano terá 577 mil urnas. Bastaria, porém, violar umas poucas e Bolsonaro se encarregaria da confusão. À revista Fórum, Moreira afirmou que no papo no PL cogitou-se de Delgatti juntar-se às Forças Armadas na fiscalização das urnas. Os militares são outra fonte de desconfiança sobre as intenções presidenciais de melar a eleição. Em março, o Exército selou um acordo com uma empresa israelense de segurança cibernética, a CySource. Israel é país de ponta em espionagem e Tecnologia da Informação. O trato, vigente desde junho e válido por um ano, foi costurado pelo embaixador brasileiro em Tel-Aviv, ­Gerson ­Menandro Garcia de Freitas, general da reserva nomeado por Bolsonaro em 2020. O projeto é levado adiante pela área de Defesa Cibernética do Exército, chefiada por outro general, Heber Garcia Portella, integrante da comissão criada pelo TSE para atestar a confiança do sistema eleitoral.

O general Portella chefia a área de Defesa Cibernética do Exército e integra uma comissão do TSE. Delgatti poderia prestar serviços a ele, como se articula no Palácio da Alvorada? – Imagem: EB e Bento Viana/GOVDF

Pelo acordo, a CySource ensinará a turma verde-oliva a ser, digamos, hackers do bem. Veja-se o que disse à época de sua assinatura um dos instrutores da empresa, Lili Rosenberg, a um site brasileiro dedicado a tecnologia, o ItForum: “Consiste em treinar pessoas para que entendam como um hacker mal-intencionado atua, quais são as técnicas que ele usa e simular um ataque para antecipar esses agentes e prevenir as entradas”. Rosenberg nasceu em São Paulo, mas estudou e mora em Israel, e é um dos vários brasileiros da CySource. Outros dois são ex-tenentes do Exército: Luiz Katzap, gerente de vendas, e Hélio Cabral Sant’ana, um dos executivos. No início da gestão Bolsonaro, Sant’ana foi diretor de Tecnologia da Informação da Presidência. Quando o jornal Brasil de Fato noticiou, em maio, que ele e Katzap estavam no negócio, o procurador Lucas Furtado pediu uma investigação do acordo ao Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo. Como tudo tinha sido feito após o general Portella entrar na comissão do TSE, Furtado suspeitava que o Exército havia sido usado “para atender a um capricho de Jair Bolsonaro, que, de forma insistente, tem questionado a segurança das urnas eletrônicas e dos procedimentos de apuração eleitoral” do TSE. Seria, segundo o procurador, um desvio de finalidade a justificar o exame com lupa do contrato.

A corte de contas não deu bola e acaba de encerrar o assunto. Melhor para Bolsonaro e seus fardados. “Os militares são os responsáveis pelos quatro níveis do Sistema de Defesa Cibernética do Brasil. O general Heber Garcia, comandante de Defesa Cibernética, firmou parceria com a empresa israelense CySource. Você acha mesmo que eles não sabem onde está o problema? Acorda!” Palavras de um tuíte de 12 de julho de um empresário bolsonarista, Alan Lopes, candidato pelo PL a deputado estadual no Rio de Janeiro. No dia do tuíte, a mídia havia noticiado que as Forças Armadas planejam um esquema especial de fiscalização das urnas, fato festejado por Lopes e, sabe-se agora, uma oportunidade para Delgatti colaborar com o presidente.

VIOLAR ALGUMAS URNAS SERIA PRETEXTO SUFICIENTE PARA BOLSONARO APONTAR A “FRAUDE” NO PROCESSO ELEITORAL

Antes de voltarmos ao hacker, um último detalhe sobre a CySource. Um dos fundadores é Amir Bar-El, ex-agente do Mossad, o serviço secreto de Israel. ­B­ar-El tinha sido gerente de negócios de outra companha israelense de cibersegurança, a NSO. Esta se viu metida em um escândalo de espionagem em abril do ano passado. Um software desenvolvido pela NSO, o Pegasus, fora usado para espionar autoridades pelo mundo. A ferramenta permite invadir celulares, por exemplo. O governo esteve a ponto de comprá-la quando o escândalo estourou e abortou o sonho de Carlos Bolsonaro, o miliciano digital-chefe. Havia uma licitação do Ministério da Justiça em andamento, a 003/2021, cujo valor inicial era de 25 milhões de reais, para adquirir um equipamento semelhante ao Pegasus. A NSO ofereceu o seu por 60 milhões, mas depois desistiu da licitação. O vencedor da concorrência foi a Harpia, fornecedora de software similar.

Delgatti faria a festa com um equipamento desses. O hacker sente-se desprezado por Lula, de quem se considera salvador, e parece disposto a forçar a barra em busca de alguma recompensa. É a hipótese para explicar a razão de ter se bandeado para o lado de Bolsonaro. Em 28 de julho, o hacker disse à Fórum: “Não só voto, como peço que votem no Lula, faço campanha. Vou apertar 13”. No mesmo dia, Ariovaldo Moreira, ainda seu advogado, acertou uma entrevista do cliente ao jornalista Matheus Pichonelli, do UOL. A Pichonelli, ­Delgatti disse: “Eu invadi o Lula”. Teria obtido algo comprometedor em algum celular ou e-mail do ex-presidente? Algo pelo qual Bolsonaro pagaria? Na entrevista, mostrou-se aborrecido por nunca ter ouvido do ex-presidente uma palavra de agradecimento: “O Daniel Silveira fez muito menos pelo Bolsonaro do que eu fiz pelo Lula”. Silveira é aquele deputado condenado a oito anos de cadeia pelo Supremo que ganhou anistia do capitão. O senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, é autor de uma lei para anistiar Delgatti, mas a proposta, de fevereiro de 2021, nunca andou.

O hacker é réu desde janeiro de 2020, em razão da obtenção das mensagens de celular trocadas por Deltan Dallagnol com Moro. Seu processo corre na 10° Vara Federal Criminal de Brasília. É acusado de formação de quadrilha e interceptação ilegal de comunicação alheia. Ficou preso preventivamente em decorrência da Operação Spoofing entre julho de 2019 e setembro de 2020, embora tenha sido solto de fato um mês depois, pois sua detenção também servira para cumprir pena por falsificar uma carteirinha de estudante em 2015 (a punição foi extinta no mês passado). Ao ser libertado, foi obrigado a usar tornozeleira eletrônica, proibido de utilizar celular e internet e de deixar Araraquara, sua terra, distante 85 quilômetros de Ribeirão Preto, onde estuda.

Freitas, embaixador do Brasil em Israel, assina contrato com a CySource – Imagem: Rede sociais

Foi em Ribeirão Preto que o hacker encontrou Zambelli em um hotel, início da história que o levaria a Bolsonaro dali a duas semanas. Segundo a deputada, o encontro foi “fortuito” e ocorreu em 28 de julho, mesmo dia da entrevista de Delgatti à Fórum e do acerto para outra, ao UOL. Se a data citada pela parlamentar for verdadeira, o hacker dizia, de um lado, que votaria em Lula e, de outro, falava com uma apoiadora fanática do presidente. A parlamentar escreveu sobre o “encontro fortuito” ao publicar no Twitter uma foto ao lado de Delgatti. A publicação ocorreu em 10 de agosto, horas depois da reunião com o presidente no Palácio do Alvorada.

Moreira, que concorreu a vereador em Araraquara na eleição municipal de 2020 pelo finado partido bolsonarista, o PSL, disse em duas entrevistas que não concordou com a visita de Delgatti ao presidente nem com a participação do hacker em propaganda contra as urnas eletrônicas. Por isso teria desistido de defendê-lo no processo em curso. Depois dessas entrevistas, o advogado fez um boletim de ocorrência, na noite de 13 de agosto, no qual relata ameaças de morte após ter se reunido em Brasília, ao lado do hacker, com integrantes do governo federal. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

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