Opinião

Visita do Papa ao Iraque desmascara algumas falácias

‘No Brasil, a vitória, ilegítima, do presidente genocida é fruto da instrumentalização da religião’, escreve Milton Rondó

Foto: AHMAD AL-RUBAYE / AFP
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“Não instrumentalizem a religião.”
Papa Francisco.

A viagem do Papa Francisco ao Iraque, de 5 a 8 de março do corrente ano, tem sido considerada como a mais importante do pontificado dele, por várias razões.

Em primeiro lugar, pelo aprofundamento do diálogo inter-religioso.

O Papa foi a Ur, a cidade de Abraão, de onde o patriarca saiu para a terra prometida de Canaã, em obediência a Deus, que, em Ur, pela primeira vez, falou-lhe, prometendo que a descendência abraâmica seria tão numerosa quanto as estrelas do céu.

Deus cumpriu sua promessa: judeus, cristãos e muçulmanos, descendentes Dele, povoam toda a terra.

Em Ur, o Papa dialogou com as outras duas religiões abraâmicas e a todos pediu que olhassem para o céu e jamais se esquecessem da promessa de Abraão.

Segundo ponto alto da visita, na cidade mais cristã do Iraque, Qaraqosh, no Curdistão iraquiano, o Pontífice denunciou a instrumentalização da religião.

O sucessor de Pedro demonstrou, mais uma vez, que o Pai lhe concede o dom da omnisciência, indo seus ensinamentos do particular para o universal.

Com efeito, em nenhum outro país como no Iraque a crença religiosa foi instrumentalizada com tal intensidade, levando à guerra civil, que deslocou milhões de pessoas dentro e fora daquela nação.

No Brasil, a vitória, ilegítima, do presidente genocida também é fruto dessa instrumentalização da religião. Ao não mais conseguir acender ao poder pelo voto, os fascismos nacionais – aliados ao internacional – também recorreram à instrumentalização da religião, levando a falsas disputas e verdadeiras guerras religiosas, que, na verdade, são políticas, convenientemente disfarçadas.

Ao desmascarar essa falácia, o Papa jogou luz não apenas sobre conflitos nacionais, mas também internacionais, como é o caso da guerra de agressão de Israel contra a Palestina, que nada tem de religiosa e tudo de imperialista e colonialista.

Em terceiro lugar, a viagem demonstra a sofisticação da diplomacia de Francisco: após assinar declaração de fraternidade inter-religiosa com o Grão Imame Sunita, o Papa, nesta visita, foi à cidade santa xiita de Najaf, exclusivamente para se encontrar com o Grão Aiatolá Al Sistani, chefe espiritual de 60% da população iraquiana.

Ao fazer aquele gesto, diminuiu a pressão sobre o regime xiita do Irã, que os Estados Unidos e a Europa Ocidental – com menor intensidade – tentam isolar. Um verdadeiro exemplo de diplomacia preventiva, raro nos dias atuais.

Belíssimas, nesse sentido, as palavras de Al Sistani, reproduzidas em cartazes em todo o país, para a recepção a Francisco: “Vocês são parte de nós, como nós somos parte de vocês”.

Nada poderia estar mais em sintonia e integrado à encíclica “Irmãos Todos” de Francisco.

No que considero outra sincronicidade junguiana, particular, li concomitantemente o belo texto “A vitória da modéstia”, de Luiz Gonzaga Belluzzo, em CartaCapital.

Nele, o economista refere-se ao grande jogador de futebol Ademir da Guia: “Ademir da Guia deslizava pelo gramado dominando os espaços e desesperando os adversários com sua ubiquidade silenciosa, movimentando a equipe com seus movimentos identificados com os movimentos de todos. Quando seu inseparável companheiro Dudu chegou da Ferroviária de Araraquara, em 1964, os novos colegas recomendaram: quando você roubar a bola, procure o Bolão porque ele coordena o jogo do time. Ademir estava no time e o time estava nele. Não existe Eu, existimos Nós”.

Lembrando de outro argentino, como o Papa, o Che Guevara também tratou do diálogo humanitário, em que conseguimos nos sentir parte de toda a humanidade, integrados a ela: “Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.”

A propósito, em “Islã: esse desconhecido”, Samuel Sérgio Salinas recorda sobre as Cruzadas: “Os europeus se dirigiam à Terra Santa supondo que os muçulmanos adoravam a Maome como um Deus. Logo nos primeiros contatos, foram perdendo suas ilusões. Por sua vez, o Corão menciona, respeitosamente, o “Profeta Jesus”, acolhe a concepção virginal de Maria e admite o convívio pacífico com as religiões reputadas “do Livro” (judeus e cristãos)…Os muçulmanos também asseguraram a política de portas abertas para os judeus que fugiam das perseguições na Europa cristã durante a inquisição.”

Naquela obra, Salinas aclara: “Para Karen Armstrong, o antissemitismo é um vício cristão…O ódio aos judeus somente surge entre os muçulmanos após a criação do Estado de Israel, em 1948, e a subsequente perda da Palestina. Acrescenta Armstrong que os muçulmanos foram obrigados a importar mitos antissemitas da Europa e traduzi-los para o árabe, pois eles não tinham tradição própria a respeito.”

Em mais uma lição para o atual desgoverno brasileiro, em que a ética é desconhecida, a filosofia desprezada e a teologia instrumentalizada, Salinas também recorda: “Na sociedade islâmica medieval, a economia era estudada como parte integrante da ética, da filosofia e da teologia.” Coloquemos Paulo Guedes em contraste com esse pano de fundo e entenderemos quão baixo descemos como sociedade e civilização.

Porém, não percamos a esperança do conhecimento, da empatia, da solidariedade. Somos um todo e assim um dia nos reconheceremos. Todos temos a aprender e a ensinar, uns com os outros e as outras.

E Salinas nos lembra ainda um último ensinamento dos irmãos e irmãs muçulmanos: “Nunca o muçulmano é compelido a desprezar ou ignorar as coisas deste mundo. Pelo contrário, compete-lhe organizar a cidade terrestre.”

Pela organização que vimos da viagem do Papa ao Iraque, o carinho dos cristãos e muçulmanos e a ética dos governantes, esses ensinamentos estão mais vivos do que nunca. Quanto temos a aprender com o outro e a outra!

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