Tales Ab'Sáber

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É psicanalista, ensaísta, professor de filosofia da psicanálise na Universidade Federal de São Paulo, autor de, entre outros, “Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica”.

Opinião

Um lugar unido, resistente e psicodélico: Bacurau é aqui e não é aqui

É importante reconhecer, a maior violência em Bacurau se dá antes de que os vilões de cinema internacional deem o primeiro tiro

Cena de Bacurau (Foto: Divulgação)
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Bacurau é um filme violento. Ninguém põe em dúvida este aspecto. Porém, os tiros e as mortes se dão nele de uma forma especial, de origem coletiva, reconhecível como signo do caos de uma tradição. Em conjunto com a ironia de se inserir no código do tiroteio sádico mais geral, uma imagem da repetição eterna da excitação das massas – alguma coisa como um Tarantino caboclo – o filme recupera e se articula a uma longa tradição de cinema, de expressar formas do país pela vida de uma violência densa, crua, muitas vezes banal, rebaixada e derrisória de seus próprios atores. Porém, decisiva a respeito de algo de difícil nomeação, que nos é próprio. Um plano mais amplo, de um modo secreto, das coisas da história da nossa violência: que sua expressão chocante e explícita não corresponda a nenhum projeto de civilidade, lei ou razão. É importante reconhecer, a maior violência em Bacurau se dá antes de que os vilões de cinema internacional deem o primeiro tiro: ela se dá na força, construída de modo ‘estranho’ e sistemático, do horror de uma comunidade sitiada e desprezada por seu próprio país.

É verdade que o cinema, em todo lugar, sempre se interessou pelo tiro, pelo sangue e pelo crime. Mas, no caso do cinema do Brasil, e Bacurau confirma a norma, o crime sempre significou mais do que uma bala fria e rápida, saída do cano de um revólver íntimo ao corpo de seu caubói ou policial, que mantinham a imagem integrada do homem livre e moderno, em oposição ao terror que o seu tiro punha à maior distância. Era a nossa violência densa e satisfatória do anti-humanismo local, para fora e para dentro de nós mesmos, na guerra do nada, que tem o nome de um país. A violência real e extrema como realidade da vida coletiva, sua sombra inultrapassável. Sua lei, sua linguagem e sua finalidade.

Entre nós o cinema se esforçou em dar forma para a experiência de uma história que se desenha como duplo da violência. Essa percepção vem de muito longe. A violência que se abatia sobre os marginais de O Anjo Nasceu ou os marginais psíquicos de Matou a Família e Foi Ao Cinema (Júlio Bressane, 1969) era a generalização no mundo da vida urbana de um quadro de iniquidades e terrores de Estado e ditadura que, já então, não correspondiam à vida comum, nem a consideravam, como um direito humano ou horizonte. O Caso dos Irmãos Naves, (Luís Sérgio Person, 1967) com sua violência espantosa, paradoxalmente elegante, de um Estado deformado em forma de milícia particular.

A tentativa de cultura non sense, tropicalista negativa, sobre a degradação da vida popular, dançando um tango sertanejo ao som de Jimmy Hendrix sobre os corpos descartáveis pobres da Boca do Lixo, de O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968). Um Pixote (Hector Babenco, 1980) assassinado sem chance de país, alguns anos mais tarde, ou a estupidez autônoma de O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953) alguns anos antes, o único resto autêntico de um filme do mundo artificial e kitsch com sotaque italiano da Vera Cruz paulista. Ou a violência épica totalmente consciente, socialmente consciente, ainda que pura poesia, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), a referência mais próxima de Bacurau, e o show de terror, em estilo mundial, da sociedade dos assassinos e dos assassinados, de Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002). A violência seca e do inferno tropical em transformação modernizante catastrófica, de Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge Bodanki e Orlando Senna, 1975) o nosso Apocalipse Now: de todos o que mais tem a estrutura de extermínio racista desenhada pelo país sobre si mesmo, sobre o povo periférico, nordestino, índio, negro, caboclo, pobre e desinvestido, algo equivalente, como fantasia politica ativa, à fábula macabra projetada em um mundo de cultivo do extermínio, do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Bacurau está na linhagem do grande afresco do cinema brasileiro sobre o Brasil ser um projeto de nação forjado interiormente, e permanentemente, por uma violência irredimível, que nunca larga, e nunca completa, nem se desloca para outro campo, ou é elaborada, sobre a realidade nacional. Uma força histórica da desrealização de algo, vivendo em estado de repetição, nossa civilização continuada da morte do povo brasileiro. Porque o famoso “aprenderão, pela força, pelo poder universal dos infernos!”, do ditador Diáz de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) por essa explosão arqueológica de violência massiva que atravessa momentos importantes de nosso cinema, significa exatamente que nunca aprendemos – nem apreenderemos? – que a força só resulta em mais força, pois nada existe fora dela, e que o poder universal dos infernos nem sequer precisa ser invocado: o inferno, deste ponto de vista, que o cinema tenta dar forma como história nacional difícil, sempre foi aqui.

Também, olhando por outra perspectiva, Bacurau se inscreve nos quadros de revolta e de luta pela vida, com suas formas antropológicas e de desenho de geografia, do sertão nordestino brasileiro. Tanto do mito quanto da coisa. Vendo, no começo do filme, a esperançosa tentativa de convocação e unificação popular, por uma imagem e corpo de seu passado, o povo neo-sertanejo sonhado no velório comunitário, funeral e luto da líder cabloca, com ecos de misticismo popular, que é força na superfície da vida – o mesmo fundo impreciso de ‘uma boa religião popular’, de uma ética da pacificação, que faz o reencontro com algo do país em Central do Brasil (Walter Salles, 1998) – recordei-me da Palmeira dos Índios de “Infância”, do sertão das Alagoas de Graciliano Ramos, e a geografia humana das suas forças micro-políticas, de uma pequena cidade do interior do Brasil anterior à revolução de 1930.

Como na infância de Graciliano, cada figura, cada prédio, cada rua ou árvore, cada venda boteco da cidade compunham o mapa secreto de uma sociedade, e seu sonho único, que, relativamente excluída do mundo maior, encontrava ao seu modo o seu ponto de integração. É a imagem, também, da Santo Amaro da Purificação, moderna e popular, nos anos de 1950, pacificada e rica demais para um menino inteligente como Caetano Veloso, rememorada em Verdade Tropical, muito admirada, como um espantoso fato de complexidade social a brilhar no céu da história de um país, por Roberto Schwarz. E, como nas conversas do bar da Palmeiras dos Índios de Graciliano se discutia ainda, em detalhes, os eventos da proclamação da República no Rio de Janeiro, mais de vinte anos após o ocorrido, como se eles nunca tivessem acabado de acontecer, ou ainda pudessem mudar o seu rumo em meio ao desejo de quem contava de novo a história…, a Bacurau do cinema de hoje, desde o seu último e mais amado marginal, até sua primeira criança assassinada, se sabe integrada no grande plano do desejo de extermínio do mundo contemporâneo, que, lhe invade, por terra e por ar, já que ainda não há mar, nem água, no sertão… – a não ser em seu sonho místico psicodélico.

A narrativa fabular e fantástica é se de fato a alegoria tocar a época, a tentativa de livrar ao menos uma vez a comunidade do sacrifício – o que não é uma ansiedade imaginada, mas uma paranoia objetiva – pelo prazer do cinema e de sua arte. O filme é pródigo em se impor ao seu espectador, como grande manipulador de emoções, e de pensamentos. Se a cidade e sua vida íntima está condenada, como os vilões globais do filme desejam e determinam,  como um mero jogo, então o cinema reconta a história, inverte os valores, inventa a força, e faz a justiça sonhada na vida popular daquele Brasil, da arqueologia da violência moderna que está sempre a ser projetada.

Da Guerra de Canudos permanente e sem fim brasileira, me parece ser a primeira vez que a imagem da unidade popular simplesmente vence, nos próprios termos da sua violência, os exterminadores e ocupantes – de Paulo Emílio? – do próprio país. Aliás, com um tom apenas um grau rebaixado, parece que vemos na imagem da natureza do sertão contemporâneo de Bacurau a mesma vibração amorosa e positiva, com sua própria esperança e força, das descrições de Euclides  da Cunha que inventaram o sertão do Nordeste para o país. O mesmo grão de vida, paradoxal, de celebração e amor à terra, que confrontava e determinação mortal da dinâmica da história, o extermínio do povo “estrangeiro” ao próprio país.

De todo modo, se o cinema é sonho e é fábula, como diz a sua versão mais infantil e colonialista, e sempre fomos invadidos por um cinema mundial americano que justificava assim as suas práticas de tomada de território e extermínio à bala e bombas da diferença mundial, que não virasse mercado dominado, então a fábula de Bacurau é fascinante desejo micropolítico, novo antropofágico pop, de se por no lugar do exterminador do futuro, incorporar a força do inimigo, e fazê-lo sentir, em uma nova rodada de política, do próprio remédio ou bala. É divertido, para alguns de nós, vermos os tradicionais portadores da civilização do extermínio do outro, eternos vencedores, exterminados pelos frágeis do neo-sertão brasileiro.

E não acredito que, como outros críticos enunciaram, devamos pedir “ai amor, não briga, não me castiga, que eu não sonho mais…”. Bacurau não pode viver sem deixar de saber de seu destino, descartável, no mundo de hoje. O terror do filme, que muitos recusam como simplório ou precipitado, como resposta que põe tudo em xeque, é exatamente o nome contemporâneo, sem nome, da descartabilidade e da irrelevância, disposta para qualquer jogo de qualquer natureza global, de comunidades e de realidades humanas inteiras. E o governo, e o Estado, contemporâneos no Brasil nunca foram tão explicitamente coloniais e ativamente mortais para parcelas inteiras da população, e do ambiente, como agora.

Sempre foi assim, algum protegido, bem ao lado dos vencedores canastrões deste mundo, pode sempre dizer. Sim, enquanto houve capitalismo sempre foi assim. O clássico capítulo de Marx da história da destruição da vida rural inglesa para a produção do grande cercamento, e para a liberalização da mão de obra em massa para as fábricas de Londres e Manchester, e seus cortiços mortais, já fotografou as primeiras guerras de extermínio de Bacurau, como lógica de fim do mundo, lucrativa, já acontecendo dentro da Europa, a mais de trezentos anos. Não é verdade? Sim. Ainda antes, cidades, povos e continentes inteiros foram devastados, por uma lógica e um tipo de homem que jamais se preocupou em se explicar. O fundo do mal de Bacurau é um abismo sem fim, um fantasma tanático com o qual todos lutamos à séculos, que tem o nome de Ocidente, modernidade ou capitalismo. E, dentro desta história mundial da violência, tem a forma particular do caso Brasil. Mas, o cinema e a pequena cidade, e real humanidade, do interior, se vingam, a bala. Matam impiedosamente os senhores da guerra. Recusam a paz extorquida e a morte constante, a vida sempre protelada. Um sonho vão? Apenas um sonho. Realização alucinatória de desejo. Os incomodados, que pensam não participar da guerra em que vivem, que fiquem sabendo o que os mundos que desprezam pensam a seu respeito.

Por fim: quando a imagem da técnica avançada, da câmara em meio ao céu estrelado vendo a unidade azul da terra desde a proximidade do satélite que passa calmo e feliz – único ser em paz, mesmo que vazio, de todo esse mundo… – e “Objeto não identificado” começa a tocar, na voz da Gal de 1969, temos presente o desejo perdido de amor e de inteligência, do país cosmopolita e delicado, integrado e amoroso, pop e popular moderno, que alguma dinâmica do século XX brasileiro realmente sonhou e tocou, e que, com o esforço histórico concorrente de todo tipo de monstro brasileiro, terminou no bangue-bangue pela vida em Bacurau.

Como sabem bem os cinéfilos amantes do cinema brasileiro, aquela canção mais linda e mais inteligente do mundo, de Caetano Veloso, é a mesma que encerrava a distopia futurista, fábula política, de Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr., de 1969… Ela encerrava o filme sobre a imagem de sua única personagem, uma garota, que escapava ao terror de Estado e das empresas, da alegoria totalizante de então. A garota que, caindo na estrada, como toda uma geração, partia rumo ao Brasil interior. “A cidade não mora mais em mim…”, disse outro grande artista, sobre o desejo de retorno, porque “vou voltar, sei que ainda vou voltar…”. Hoje, aquela imagem histórica, da civilização de nossa música e de nosso cinema, revive, como força de confronto que não quer entregar a vida de graça, e nem vai deixar barato a desgraça que vem do alto e vem do mundo, em meio a guerra do presente. “Já temos um passado meu amor”.

O objeto não identificado, agora, é a Bacurau popular unida, resistente, psicodélica e afetiva, que estoura os miolos de quem deseja transformá-la em abstração da técnica mundial, para a acumulação de pontos vazios dos assassinos, história de longa duração do extermínio de um povo.

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