Drauzio Varella

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Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

Sexo mais seguro?

Uma dose única de um antibiótico, tomado até 72 horas depois da relação, reduz o risco de infecções bacterianas sexualmente transmissíveis

Foto: Agência Brasil
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Na Conferência Internacional de Aids, que aconteceu em Montreal no último 24 de julho, foi apresentado o estudo doxyPEP, realizado nas cidades americanas de São Francisco e Seattle. E o que ele mostra é o efeito de uma dose única de um antibiótico na redução do risco de infecções bacterianas sexualmente transmissíveis.

Em 2015, foi publicado um pequeno estudo, feito entre 15 homens infectados pelo HIV, que faziam sexo com outros homens. Todos tinham comportamento sexual que os colocava em risco alto para a contração de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Ao lado do tratamento antirretroviral, os 15 passaram a receber o antibiótico doxiciclina como estratégia de profilaxia pré-exposição (PrEP).

Comparados com outros 15 homens com características semelhantes, mas que não receberam o antibiótico (grupo controle), 48 semanas mais tarde, o grupo tratado apresentou redução significativa do risco de desenvolver sífilis, Chlamydia e gonorreia, as três infecções bacterianas sexualmente transmissíveis mais frequentes.

Em 2018, foi conduzido um estudo na França com a mesma ideia, mas com outra estratégia: a PEP, profilaxia pós-exposição, na qual o antibiótico foi administrado em até 72 horas depois das relações sexuais, sem o uso de preservativo. Houve redução de 70% no risco de contrair Chlamydia e de 73% no de adquirir o treponema da sífilis.

Esses estudos, com números pequenos de participantes, foram considerados “pilotos” para a elaboração do atual em São Francisco e Seattle, que envolveu 544 participantes, na maior parte homens que fazem sexo com homens, mas também algumas travestis e pessoas de outros gêneros. Em comum, todos tinham estilos de vida que aumentavam o risco de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Dois em cada três participantes seguiram protocolo semelhante ao do estudo francês: um comprimido de doxiciclina 72 horas depois da relação sexual desprotegida (grupo doxiPEP). O terço restante serviu de grupo controle (sem antibiótico).

No grupo doxiPEP houve redução de mais de 60% no risco de contrair gonorreia e Chlamydia. Ocorreu também diminuição do risco de sífilis, mas, nesse caso, os números não alcançaram significância estatística.

Numa época em que a prevalência dessas três doenças vem aumentando no mundo inteiro, a administração de dose única de um antibiótico de baixo custo, usado há mais de 45 anos, no tratamento da acne, da doença de Lyme (riquetsiose transmitida pelo carrapato) e na prevenção de malária em viajantes (embora com resultados conflitantes), com efeitos indesejáveis mínimos (desconforto digestivo e aumento da sensibilidade à luz solar), pode ter impacto na transmissão das infecções.

Embora em dose única os efeitos colaterais sejam muito raros, a adoção desse uso preventivo da doxiciclina foi recebida com reações contraditórias pela comunidade científica. Ao lado de entusiastas que comemoram a descoberta de um caminho para reduzir o número de casos dessas doenças há os que se preocupam com o possível aparecimento de uma consequência indesejável: o desenvolvimento de resistência bacteriana.

O emprego de antibióticos em doses baixas provoca a seleção de cepas bacterianas resistentes a eles, fenômeno conhecido há décadas. Na base do mecanismo de resistência está a capacidade das bactérias em transmitir umas às outras os genes responsáveis pela resistência.

Em um comentário publicado na revista Science, Christofer Fairley, diretor do Departamento de Saúde Sexual da Universidade Clayton, em Melbourne, considera injustificável correr esse perigo, uma vez que diversos casos de infecção por Chlamydia e gonorreia são assintomáticos, evoluindo para cura sem tratamento.

Esse argumento me parece irrelevante. A sífilis não tratada pode provocar comprometimento ocular, auditivo e cerebral, além de abortamentos e malformações fetais. Sem tratamento, a gonorreia pode causar quadros de artrite e a Chlamydia levar a infecções pélvicas graves, entre outras complicações.

Dispor de uma droga barata, administrada em dose única, nas primeiras 72 horas depois da relação sexual desprotegida, para reduzir o risco de contrair doenças tão graves, talvez compense o risco da resistência bacteriana. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sexo mais seguro?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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