Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Ser feia dói?!

Escrevo na esperança de que, ao ler o meu depoimento, minhas irmãs de cor se darão conta das mentiras que nos foram contadas

Créditos: Glaucio Santos
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“Luana, ser feia dói?”. Com essas palavras, era recebida diariamente.

Nunca tive resposta para essa indagação. Ficava em silêncio. Enquanto o autor da pergunta sorria, um verdadeiro nó se instalava em meu peito. Minhas mãos suavam. Me restava torcer para que o instante entre a pergunta, o sorriso dele e a minha angústia passassem logo.

Quando me tornei adolescente, a pergunta deu lugar a uma assertiva: ” A Luana é feia de rosto, mas é bonita de corpo”. Nunca questionei. Nunca respondi. Em silêncio, ouvia a discussão em torno da minha “feiura”. Discussão que acontecia ora na sala, ora na mesa, durante o almoço. Sempre na minha frente. Sem qualquer constrangimento. Calada, sonhava com o dia em que finalmente me tornaria uma garota inteligente e ninguém mais teria coragem de tecer esse tipo de comentário a meu respeito. Via nos estudos a minha salvação, a minha vingança.

Essas lembranças me vieram à mente após uma jornalista perguntar se o feminismo é importante para o empoderamento das mulheres. Disse que conhecer o movimento feminista negro mudou o meu olhar sobre o mundo. Compreendi a opressão de gênero, raça e classe que historicamente recaem sobre os ombros das mulheres negras. Entendi também o peso da violência, da invisibilidade e do silenciamento que marcam a nossa existência, em todas as esferas da sociedade. Mais do que isso: me vi como sujeito na luta contra os mecanismos de subjugação, que castram os nossos sonhos e dilaceram o nosso ser. Contudo, preciso afirmar que foi a análise que contribuiu de fato para o meu processo de empoderamento, que é diário e contínuo.

Foram três anos intensos no divã para expurgar as mentiras que ouvi durante toda a minha vida. Mentiras que tomei como verdadeiras. Bonitas eram as crianças e as mulheres brancas. Assim me foi ensinado na escola, na televisão, nos ambientes que frequentava. Ainda que aquelas palavras me machucassem – “Luana, ser feia dói?!” -, na minha cabeça, haviam motivos para que elas fossem ditas. Talvez por isso, jamais tenha conseguido reagir. Conforme apontou o médico psiquiatra Jurandir Freire Costa: “A violência racista subtrai do sujeito a possibilidade de explorar e extrair do pensamento todo o infinito potencial de criatividade, beleza e prazer que ele é capaz de produzir. O pensamento do sujeito negro é um pensamento que se auto-restringe. Que delimita fronteiras mesquinhas à sua área de expansão e abrangência, em virtude do bloqueio imposto pela dor de refletir sobre a própria identidade”.

Dentro dessa lógica perversa, não basta o apartheid que separa brancos e negros. É preciso massacrar, negar a humanidade, inferiorizar, humilhar, ferir nossa alma da população negra de maneira profunda. É uma humilhação cotidiana que nunca cessa, ainda que o negro ascenda socialmente. Nos dizeres da saudosa psicanalista Neusa Sousa Santos: “Saber-se negra e viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”.

Nos textos que escrevo, nos debates a respeito do feminismo negro que participo, procuro também incentivar as mulheres negras a buscarem a cura para as dores que são tão corriqueiras em nossas trajetórias. Bell Hooks orienta as minhas falas, ilumina o meu percurso.

A revolução que tanto almejamos requer um olhar atento e generoso para as questões de dentro. Assim, caminharemos no sentido de enfrentar e superar os processos de alienação que nos machucam e nos distanciam do que realmente somos. Assim, poderemos, dentre várias coisas, “acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras”.

 

Encontrei na análise um caminho importante para a cura das feridas provocadas pelo racismo. No meu processo de empoderamento, que repito mais uma vez, é diário, contínuo, individual e coletivo, ser acompanhada por uma psicanalista foi um privilégio que, infelizmente, muitas ainda não podem desfrutar. Nessa travessia, tenho consciência de que há outros caminhos possíveis.

Hoje me sinto mais feliz, mais segura. A pergunta que me perseguiu por tanto tempo – “Luana, ser feia dói?! –, já não me perturba mais. Olho no espelho e gosto do que vejo. Gosto do meu sorriso, da minha pertença racial, das linhas de expressão que se formam embaixo dos meus olhos cada vez que eu sorrio, das minhas mãos alongadas que são iguais as do meu pai. Gosto das minhas pernas torneadas pela corrida. Gosto de olhar para trás e ver tudo que consegui construir até aqui. Gosto mais ainda de não sentir dor, nem medo.

Muitos dizem que precisamos escrever outras narrativas, que não passem somente pela perspectiva da dor. Concordo. Em parte. Quando trago as cicatrizes que marcam a minha caminhada, trago a esperança de que, em alguma medida, elas servirão de subsídio para a tomada de consciência e, consequentemente, para o reconhecimento, para o enfrentamento do racismo que alicerça a nossa sociedade. Quando isso acontecer, histórias como a minha deixarão de ser contadas.

Nessa semana em que se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Afro-Caribenha, escrevo na esperança de que ao ler o meu depoimento, minhas irmãs de cor se darão conta das mentiras que nos foram contadas e das injustiças que vitimam muitas de nós. Mentiras e injustiças que, em várias ocasiões, nos impedem de seguir em frente, de celebrar nossos corpos, de reconhecer as nossas potencialidades, de sonhar com outro tempo.

Merecemos outra vida. Leve. Feliz. Sem racismo, sem discriminações, sem violências. Juntas podemos conseguir.

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