Opinião

Sem compaixão, não chegaremos a lugar nenhum

No momento da pandemia, a interdependência fica ainda mais evidente

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“Aprendi a ser o máximo de mim mesmo.”
Nelson Rodrigues

A citação está na biografia de Fernanda Montenegro, “Prólogo, ato, epílogo”, da editora Companhia das Letras. Recomendo a leitura: uma vida de luta, beleza e engajamento. Como o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, Fernanda “viu, sentiu compaixão e cuidou dele.” No caso, do Brasil, sua cultura, sua gente.

Neste momento em que o país é provado por um governo demente, devendo enfrentar a tempestade de uma pandemia, como buscar alguma luz, em meio às tantas trevas? O Mahatma Gandhi dissera: “Nenhum povo jamais se elevou sem ter sido purificado no fogo do sofrimento.”

Em âmbito internacional, temos algumas boas luzes: Cuba, enviando seus médicos solidários à Itália; idem a Venezuela e a China, que também fez doação de 20 milhões de dólares à Organização Mundial da Saúde (OMS), todas essas as ações voltadas ao combate ao coronavírus.

A Argentina, com um quarto do número de infectados no Brasil, fechou as fronteiras e enviou aeronave da Aerolineas Argentinas à Itália, para resgatar seus cidadãos, bloqueados pela suspensão dos voos provenientes da Europa. Como sermos o melhor de nós mesmos nesta conjuntura?

O Papa Francisco, como sempre, indica a direção: em primeiro lugar, a proteção dos mais frágeis, das pessoas em grupos de risco. Retirou toda obrigação formal de comparecimento aos cultos, pediu a estrita obediência às regras ditadas pelas autoridades sanitárias e marcou a desolação humana com uma imagem que vale mil palavras, como bem definira a sabedoria chinesa: caminhou naquela que é a principal artéria de Roma, a Via del Corso, só, peregrino em busca da expiação dos pecados de uma humanidade crescentemente hegemonizada pela “necrovida”, a morte em vida.

De fato, cada vez mais, a maior parte da população mundial apenas sobrevive: não tem segurança laboral; previdenciária; aposentadoria; saúde; educação ou justiça garantida.

Pior, sentem-se cada vez mais substituíveis, descartáveis, pois a tecnologia é utilizada para a concentração de renda, único objetivo de um capitalismo desvairado, de que Bolsonaro é – a um tempo – triste símbolo e agente mais perigoso. O contrário da necrovida é a vida em plenitude: com trabalho, teto e terra garantidos, como bem enunciou o Papa Francisco com seus três Ts, imprescindíveis para a vida do trabalhador, do cidadão e da cidadã.

Como entender que somos todos partes de uma mesma árvore da vida? Que a renúncia à vida do irmão é a diminuição da minha própria vida; que a Terra é redonda e gira.

Uma sociedade excludente de direitos é uma sociedade doente, como são as sociedades que segregam os migrantes, o outro, a outra. No momento da pandemia, a interdependência fica ainda mais evidente.

Necessitamos uns dos outros para tudo: não é justo que nos Estados Unidos da América as pessoas sequer tenham acesso ao exame, de graça, para saberem se estão contaminadas ou não. Quanto ao tratamento, as empresas de medicina privada deixaram claro que farão, sim, da doença um negócio, como sempre fizeram, sem qualquer exceção. Como fazer com que o outro possa ver, sentir compaixão e cuidar?

Em primeiro lugar, saindo do próprio lugar, em sentido metafórico, sendo possível e desejável que isso se faça dentro da própria cabeça. Sair dos parâmetros da própria classe social é condição “sine qua non” para poder ver o outro, com suas necessidades e dons. Sentir compaixão torna-se, então, possível. Cuidar decorre disso. Não é tarefa menor.

Muitos leram Marx, mas quantos perceberam a dificuldade inerente à transcendência de sua condição social, para poder estabelecer – com o povo – a chave da hegemonia libertadora?

Engels, o socialista milionário, coautor do Manifesto, sem dúvida conseguiu. Rosa Luxemburgo e Antônio Gramsci herdaram de ambos aquele dom, sendo, como o próprio Cristo fora, martirizados por essa heresia, “eleição”, “preferência”, na etimologia grega da palavra, como bem recorda Leonardo Padura, em seu magnífico “Hereges”, editado no Brasil pela editora Boitempo.

Pasmem! A luz nunca pode ser permanentemente extinta, como – novamente – nos ensina a sabedoria oriental do Ying e do Yang, os princípios escuro e claro, um já contido em seu contrário.

Em Porto Alegre, os movimentos sociais continuam motivando os partidos políticos progressistas a se reunirem, em busca de diálogo, programa comum mínimo para a cidade e – a tão desejada – candidatura única à prefeitura.

Na semana passada, pela primeira vez, os movimentos sociais trouxeram para a mesa comum os três presidentes dos diretórios municipais do PT, do PCdoB e do PSOL.

Trata-se de entender que, para algumas classes sociais, a continuidade das atuais políticas neoliberais significará a morte, não mais em sentido figurado.

Os três partidos viram, sentiram compaixão e – talvez – venham a cuidar daqueles que, atualmente, não têm trabalho, teto ou terra.

Os três nos religam a Francisco, ao bem, ao amor. As trevas não venceram por aqui.

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