Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Faço faxina, se eu trabalhar, como! Se eu não trabalhar, não como!

A pandemia do coronavírus escancara as desigualdades existentes no Brasil, que infelizmente muitos insistem em não enxergar

Créditos: EBC
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Mesmo depois de abolida a escravidão/ Negra é a mão/De quem faz a limpeza/Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/Negra é a mão (Gilberto Gil)

Chamar as mães quando os alunos cometem algum ato de indisciplina é uma prática recorrente entre nós, professores. Fiz questão de escrever mães no lugar de pais, pois elas são sempre culpabilizadas quando algo vai mal com os estudantes. É como se os homens também não fossem responsáveis pelas crianças e pelos adolescentes, evidenciando quão machista é a nossa sociedade.

Há alguns anos, o Francisco*, na época matriculado no 9° ano, me tirou a paz. Além de não fazer as atividades, tumultuava a sala. Sempre que o repreendia, ele respondia de maneira hostil. Não havia mais espaço para o diálogo, para a escuta entre nós. Sendo assim, não vi outra alternativa a não ser pedir que a mãe dele fosse até a escola.

Como de praxe, recebi a mãe na sala da coordenação pedagógica. Não me recordo do nome dela, mas lembro que era uma mulher jovem, porém, envelhecida pela precariedade material.

Enquanto eu expunha a situação, Francisco derramava lágrimas, que escorriam pelo seu rosto como se fossem pedras. A mãe estava nervosa, ansiosa para que nossa conversa terminasse logo, pois ela estava atrasada para mais um dia de trabalho. Quando terminei de falar, ela explodiu:

– Não entendo por que o Francisco se comporta desse jeito! Sou sozinha! Não tenho ninguém para ajudar a sustentar os meus três filhos! Ele sabe que faço faxina! Ele sabe que eu não podia estar aqui! Se eu trabalhar, eu como! Se eu não trabalhar, eu não como! Passo o dia inteiro pensando em como vou colocar comida dentro de casa! Saio de manhã e fico pensando se meu filhos estão envolvidos com porcaria!

Fiquei impactada com essas palavras. Um turbilhão de coisas passou pela minha cabeça. Tirar a mãe do trabalho para ir até a escola teria sido a decisão mais acertada? Naquele momento o noticiário era dominado pela votação da Reforma da Previdência. Em silêncio, perguntei: que tempo essa mãe tinha para se preocupar com o que se passava em Brasília? Que tempo ela tinha para atravessar a cidade e sair às ruas contra a Reforma que custaria a aposentadoria de toda uma geração de brasileiros?

Encerrei a reunião. Agradeci pela presença dela. Disse que tinha certeza que não seria necessário chamá-la novamente. Na volta para a sala, conversei com o Francisco. Pedi a ele que fosse motivo de orgulho para a mãe. E assim foi. Não tive mais problemas com ele. Após a conversa, estabelecemos uma relação generosa. As atividades ficaram em dia. Ele tornou-se uma liderança positiva na turma. Em momentos de desordem, a voz dele sempre era conciliadora: “Pô gente! Vamos colaborar com a professora!” – ele pedia. No dia da formatura, mais lágrimas. Dessa vez de alegria, de emoção.

Nesse período de quarentena, tenho pensado muito na mãe do Francisco. Será que ela ainda ganha a vida fazendo faxina? Será que a vida dela ainda se resume em colocar comida na mesa e impedir que os filhos se envolvam com drogas? Se ela ainda faz faxina, será que foi dispensada do trabalho ou corre o risco de ter o mesmo fim da empregada doméstica que foi infectada pela patroa e veio a falecer? E se foi dispensada, será que ela está recebendo as diárias até que possa voltar a trabalhar?

O coranavírus tem impactado a todos nós, mas é inegável que ele atinge de maneira brutal a vida de mulheres como a mãe do Francisco. Função ocupada majoritariamente por mulheres negras, mais do que qualquer outro grupo social, as domésticas e as faxineiras carregam nos ombros, nos braços, nas mãos, na pele, na alma, os resquícios do passado escravocrata. A maioria delas não conta com qualquer direito trabalhista. Além disso, enfrentam medidas de combate à pandemia que têm beneficiado somente as elites econômicas. Elas fazem parte de uma categoria profissional historicamente desumanizada, invisibilizada, explorada, vista como não passível de benefícios como carteira assinada, décimo terceiro salário, férias, seguro saúde, etc.

Prova disso foi a revolta das classes mais abastadas em relação à aprovação da PEC das Domésticas, que estendeu a elas direitos garantidos aos demais trabalhadores. Não foi à toa que Carolina Maria de Jesus escreveu: “Prefiro catar papel do que ser doméstica, porque nunca os patrãos estão contentes”. Posso atestar que Carolina tinha razão.

Ganhar a vida cuidando de crianças, limpando chãos e privadas não é nada fácil. Quando trabalhei como doméstica, passei uma quarentena sem poder calçar sapatos. Os produtos de limpeza corroeram meus pés a ponto de minar sangue. Fora os desaforos que escutei: “Luana, se você não estiver satisfeita, pode pegar suas coisas e ir embora! Tem muita gente querendo o seu lugar!” – ouvi certa vez.

Somos um país formado por milhões de mulheres como a mãe do Francisco. A pandemia do coronavírus tem exercido um caráter pedagógico, uma vez que ela escancara as desigualdades existentes no Brasil, que infelizmente muitos insistem em não enxergar. Proposital, a “cegueira” é necessária para a manutenção do abismo que separa ricos e pobres, brancos e negros. Assim como a mãe do Francisco, boa parte da população luta para SOBREviver e, ao dormir, não sabe se terá o que comer no dia seguinte. Enquanto assim for, viver em um país democrático, de fato, permanecerá sendo um sonho longínquo.

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