Diversidade

Sagrada e profana: o discurso sobre a mulher e a hostilidade horizontal

O ódio à figura feminina, personificado na misoginia, foi difundido por todo o tecido social, permeando até mesmo as próprias mulheres.

ANGELA WEISS / AFP
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Nas últimas semanas, o jornalismo e a opinião pública trouxeram à tona um embate moral em torno de temáticas caras à classe feminina e ao movimento de mulheres, como o aborto, a violência sexual contra a criança e o estupro. Dentro da concepção cultural brasileira, vivemos um emaranhado de perspectivas morais controversas.

Pois, se por um lado, construímos uma cultura na qual impera a hipervalorização do corpo e do sexo, também possuímos um altíssimo percentual de religiosos. Afinal, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha em 2018, o Brasil possui 50% de católicos e 31% de evangélicos. Neste cenário ambíguo, no qual o mesmo indivíduo que consome conteúdo hipersexualizado frequenta a Igreja aos domingos, a moral social se exibe igualmente ambígua.

Parte considerável do que há de remanescente em nossa sociedade, foi edificado através dos anos de exposição àquilo que foi a infeliz gênese do Brasil: os processos coloniais, que não se originaram apenas no extermínio e controle de inúmeras populações indígenas e da escravização de pessoas sequestradas de África, como também na colonização do imaginário que se deu a partir dos credos cristãos daqueles que nos colonizaram, trazendo em seus navios ideações sobre o “profano” corpo da mulher e moldando à força a percepção social.

A forçosa conversão aos princípios cristãos foi essencial na construção de uma ótica importada daquilo que seria a mulher e de quais papéis deveria ocupar na sociedade porvir.

Segundo a moral vigente, a imagem da mulher equilibra-se entre “sagrada” e “profana”, sendo o ideal de pureza e retidão atribuído à arquétipos que remontam figuras como Maria, a mãe de Jesus Cristo, e outras importantes personagens do imaginário cristão ocidental. A mulher, como figura relegada ao espaço secundário dentro das sociedades patriarcais, encontra a sua redenção no instante em que, em um ato abnegado, incorpora os ideais de servidão e vivencia aquilo que para ela é designado: a maternidade e a vida familiar.

Se essa mulher, que nas palavras dos inquisidores da baixa Idade Média europeia, Heinrich Kraemer e James Sprenger, escritores do mais temido “manual de caça às bruxas”, era um instrumento do Diabo, a sua valoração viria apenas através do controle de outros sobre a sua vida e suas capacidades.

A construção da imagem de uma mulher de aparência assustadora, má ou promíscua, foi essencial para o fortalecimento dessa dualidade no escopo da cultura. Pois, para a instauração e manutenção de um projeto de dominância de uma classe sobre a outra, se faz necessário que haja castas dentro da própria classe oprimida, e que as mesmas sejam postas umas contra as outras.

Deste modo, não surpreende que desde o período anterior à baixa Idade Média, mulheres tenham sido classificadas como “profanas” ou “santas” e que a separação entre jovens e idosas, através do estigma da bruxa ou da mulher que inveja a juventude da outra, tenha sido fortemente alimentado em períodos nos quais a união entre as mulheres representaria um grosso retrocesso para a estrutura patriarcal.

Nesse contexto, o ódio à figura feminina, personificado na misoginia, foi difundido por todo o tecido social, permeando até mesmo as próprias mulheres. Sob essa ótica, a divisão da própria classe feminina alinhada ao conceito de “hostilidade horizontal”, trazido pela feminista de raiz e ativista pelos direitos civis norte-americanos Florynce Kennedy, nos desvenda o mistério que há muito nos atordoa: por que há tanto ódio entre nós?

Quando compreendemos os desígnios do auto-ódio que é ensinado aos oprimidos, não nos surpreendemos ao saber que um dos indivíduos que expôs e julgou mais arduamente a artista Klara Castanho, é uma mulher.

E não nos surpreenderá, também, as imagens de mulheres conservadoras comemorando a suspensão de Roe vs Wade nos Estados Unidos, ou as mensagens das brasileiras que contribuíram para a hostilidade contra a menina de 11 anos que sofreu estupro de vulnerável em Santa Catarina e realizou um aborto legal. Afinal, a hostilidade horizontal se constitui justamente na diluição do ódio que não podemos utilizar para afetar nossos opressores entre nós mesmos, acarretando um confronto no qual as condições nos parecem iguais, mas na verdade, foram pensadas para que façamos o sujo trabalho dos nossos opressores.

Nessas circunstâncias, o direito das mulheres sobre si mesmas se torna a suprema transgressão. Aquela que jamais será perdoada em sociedades patriarcais, sempre influenciando a difícil retomada da autonomia sobre nossos próprios corpos. E nas palavras de Florynce Kennedy, eu gostaria de nos aconselhar: “Não agonize, se organize. Nós somos apenas pequenos cupins, mas se todos os cupins se unissem, a casa cairia”.

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