Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Revolta dos Malês: nossos estudantes precisam conhecer essa história

‘O legado afrodescendente pertence a todos nós, daí a importância de conhecê-lo e valorizá-lo’

Créditos: Causa Operária
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Na última segunda-feira, celebrou-se o aniversário de 186 anos da Revolta dos Malês, levante negro promovido por escravizados muçulmanos nas ruas de Salvador. De presente, ganhei a live do professor João José Reis, maior autoridade do assunto no País.

Na abertura, Raimundo Gonçalves dos Santos, fundador do Movimento Negro Unificado da Bahia e mediador do evento, fez uma promessa: “Será uma grande aula para a gente, uma grande contribuição para a gente!” – ele disse. Assim foi. Uma aula de História do Brasil, uma aula sobre o povo negro no Brasil, uma aula de cidadania que deveria ser assistida por todos e todas.

Ocorrida na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, a Revolta dos Malês tomou conta da capital baiana. E não só: segundo João Reis, os líderes da insurreição eram muito experientes e sabiam que nenhuma solução para a questão escravista aconteceria se o Recôncavo Baiano, região que concentrava o maior número de negros escravizados na Bahia, não fosse incluído no levante. Tamanha lucidez e a capacidade de compreender a complexidade da escravidão causaram-me emoção, pois, a meu ver, é essa lucidez que falta às principais vozes democráticas do País na tentativa de criar caminhos para enfrentar e superar a situação de terra arrasada em que o Brasil se encontra.

Composta em sua totalidade por negros africanos, a Revolta dos Malês é parte de um ciclo de movimentos pelo fim da escravidão que teve início em 1807, da qual fez parte a Revolta do Quilombo do Urubu, ocorrida em 1827 no atual bairro do Cabula, que fica no subúrbio de Salvador. O levante evidencia a forte presença feminina na luta pela liberdade, uma vez que foi liderada pela quilombola Zeferina, que segundo Reis usou arco e flecha para defender o seu povo, tendo lutado até o último instante na batalha que culminou com sua prisão.

Ainda sobre a presença feminina nesse contexto de revoltas, João José Reis explica que não era permitida a presença de mulheres nas reuniões promovidas pelos malês, contudo, elas foram fundamentais para a logística do movimento.

Elas eram responsáveis por levar e trazer informações, como também cuidar da alimentação dos revoltosos.

Durante a live, o historiador da Universidade da Bahia trouxe alguns apontamentos a respeito de Luiza Mahin, que se tornou uma grande referência para as feministas negras. Reis afirma que, ao contrário do que tem sido amplamente difundido, durante pesquisas nos arquivos e acervos da Bahia, não encontrou qualquer documento que aponte para a participação da mãe do escritor Luiz Gama no levante africano. Embora não descarte essa possibilidade, o pesquisador ressalta que, mesmo na hipótese de que ela tenha participado, o suposto papel de liderança, como se apregoa, é “muitíssimo improvável” diante da organização muçulmana masculina dessa revolta.

Ainda segundo o historiador, a Revolta dos Malês não estava prevista para janeiro de 1835, porém, o final do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos e período em que eles se sentem “fortalecidos espiritualmente e dispostos a destruir o mundo em que vivem e construir outros”, foi decisivo para que os escravizados tomassem as ruas da capital da Bahia. Denunciado por um casal que sabia dos preparativos da revolta, o levante foi abortado precocemente, deixando cerca de setenta mortos e centenas de feridos. Ainda assim, é sem sombra de dúvidas um dos eventos mais importantes do povo negro, não só do Brasil, mas de toda América.

Terminada a live, me vi imersa em sala de aula. Durante a minha graduação, não lembro de ter tido uma aula sobre a Revolta dos Malês, evidenciando o que o professor José Jorge de Carvalho chamou de “racismo acadêmico”. Ao longo de minha jornada como professora de História dos ensinos Fundamental e Médio, assumo que jamais ofereci aos meus alunos e alunas uma aula sobre o tema com tanta riqueza de detalhes. Lamento profundamente por isso. Nossos estudantes precisam saber e refletir sobre o protagonismo dos negros na formação do país.

Destacar a luta negra no currículo escolar, além de um compromisso ético e moral com a promoção da educação antirracista, é estar em consonância com a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em escolas públicas e privadas. Vale ressaltar que tal prática não beneficia somente os estudantes afro-brasileiros, mas também todos os que compõem a variedade étnico-racial do país. O legado afrodescendente pertence a todos nós, daí a importância de conhecê-lo e valorizá-lo.

Lembro ainda que ensinar sobre os revoltosos que sonharam e defenderam o fim da escravidão não deve ser uma tarefa somente dos professores de História. A partir da minha experiência como professora e formadora de professores posso afirmar que é possível promover práticas pedagógicas sobre a Revolta dos Malês em todas as disciplinas. Para isso, é fundamental um trabalho sério de formação inicial e continuada dos docentes, como também abraçar o desejo sincero da autoatualização. É preciso ainda assumir a condição de educador-pensador-pesquisador.

Segundo João José Reis, na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 homens tomaram as ruas de Salvador. Sem o devido conhecimento da população soteropolitana do século XIX, pode parecer um número pequeno. Acontece que proporcionalmente aos dados demográficos atuais, equivaleria a algo em torno de 25 mil negros insurgidos contra a sociedade escravocrata.

Em um momento de total destruição do país, estar nas ruas com quase 30 mil pessoas era tudo o que eu queria.

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