Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Quem matou Valdemir dos Anjos?

Há quatro dias, passo pela Praça Nicola Festa e o banco de concreto, frio e ondulado, está lá, vazio

Foto: Arquivo pessoal
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Era sagrado. Todo santo dia, por volta das sete, sete e meia da manhã, eu passava pela Praça Nicola Festa, um pequeno espaço verde encravado entre as ruas Roma e Jeroaquara, no bairro da Lapa, em São Paulo.

Canela, o meu cachorro, sempre me empurrava para lá, assim que chegava na Rua Catão. Era na Nicola Festa que ele fazia suas necessidades nos canteiros, além de sentir o cheiro do bolo de cenoura que vinha do ponto de ônibus, onde uma senhora serve o café das manhãs para os ilustres passageiros. 

Era sagrado. Todos os dias ele estava lá, sentado num banco de concreto ondulado, lendo. Valdemir dos Anjos, o Val como era chamado, morava ali e seu latifúndio era aquele pedaço de verde, onde guardava seu carrinho de supermercado, transbordando de sacos pretos de plástico, uma garrafa de água dependurada, um varal de apartamento enferrujado e alguns papelões imprensados.

Val estava sempre lendo alguma coisa e quando não estava lendo, estava com um lápis na mão fazendo palavras cruzadas. Devia ser um craque porque não parava de escrever, preenchendo os quadradinhos sem deixar nenhum em branco.  

O Canela gostava dele, fazia festa, cheirava o seu carrinho e balançava o rabo. Para ele, Canela era o cachorrinho, acho que nunca soube o seu nome.

Dia desses, parei e conversei rapidamente com ele, perguntei que livro estava lendo, ele respondeu que eram histórias da Bíblia. Vi que a seu lado, repousava um ouro livro, bem maltrapilho, o Livro dos Espíritos, de Alan Kardec, com tradução de Jose Herculano Pires. Uma edição de bolso, barata, papel jornal.

Disse a ele que tinha em casa O Livro dos Santos, que provavelmente ele iria gostar. Prometi trazer o livro para ele ler, assim que o localizasse na minha biblioteca. Ele balançou a cabeça com um sinal de positivo, Val era de poucas palavras. 

Aquele homem com uma aparência de uns cinquenta e poucos anos, tinha um amigo fiel, companheiro de praça , morava também ali, o Jorge. O Jorge, um dia me pediu uma ajuda, algo para comer, já que não tinha mais nada. 

Deixei o Canela em casa, coloquei numa sacola um pacote de macarrão, um punhado de sal, molho de tomate, uma lata de sardinha, um pacote de biscoito, uma penca de bananas e um caixinha de leite longa vida. Os dois festejaram.

Tem mais de um ano que esse nosso encontro era diário. Ao virar a Rua Roma, a primeira coisa que via era Val sentado no banco, meio corcunda, com suas cruzadas e seus versículos. 

Na segunda-feira passada, eu e o Canela chegamos na praça mais cedo que o normal e não vimos o Val, apenas o Jorge, que logo levantou e veio me contar: Nosso amigo morreu!

O que aconteceu?

Ele explicou: começou a passar mal, falta de ar, tremedeira. Levei até o AMA, que fica aqui perto, mas não teve jeito. Morreu!

Engoli em seco enquanto o Canela ciscava as folhas secas.

Há quatro dias, passo pela Nicola Festa e o banco de concreto, frio e ondulado, está lá, vazio. Nem mesmo o Jorge tenho visto. Hoje, a praça tinha apenas alguns pombos comendo os farelos de bolo de cenoura.

Todo dia, caminhando, eu me pergunto: quem matou Valdemir dos Anjos?

E eu mesmo respondo: foi o Brasil!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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