Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Que venham mais ações de combate ao racismo como a do Magazine Luiza

‘Reivindicamos o direito de ser e de existir, como também a igualdade de participação e escolha’

Créditos: EBC Créditos: EBC
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No livro “Lugar de negro”, escrito na década de 1980, em coautoria com Lélia Gonzalez, o sociólogo Carlos Hasenbalg dissecou os impactos do racismo no que se refere ao ingresso da população negra no mercado de trabalho. De acordo com o autor, as práticas discriminatórias adotadas nos processos seletivos das empresas não só impedem esse segmento de ocupar cargos que exigem maior qualificação, e, consequentemente, oferecem melhores salários, mas também destitui os afrodescendentes de aspirarem a melhores condições de vida. Ainda segundo Hasenbalg, excluir e marginalizar foi uma das maneiras encontradas pelos brancos para garantir a manutenção de seus privilégios e impedir a ascensão social do negros.

 

Há poucos dias, li um post no Facebook que ilustra bem essa questão. Contadora, Joana D’arc relatou que, nos anos 1980, participou de uma seleção em que concorreu a uma vaga com mais de 30 candidatos. Divulgado o resultado, ficou entre as primeiras colocadas. Passado um longo período, não recebeu qualquer contato a respeito da contratação. Ao encontrar com um amigo que também havia sido aprovado, soube que ele já estava trabalhando havia meses. Joana descobriu que a ausência de respostas se devia ao racismo praticado pela empresa: “Ela é muito preta para o cargo!”. Segundo o amigo, foi o que disseram.

Tive mais sorte do que a Joana. Em 2002, disputei uma vaga de atendente em uma franquia da Microlins, escola de informática que ganhou destaque no cenário nacional a partir dos anos 1990. Fui bem na entrevista. Respondi com segurança a cada uma das perguntas. Senti que tinha todos os requisitos necessários para assumir o cargo. Foi o que aconteceu. Meses depois, soube por uma colega de trabalho que, embora tenha gostado muito de mim, a dona da empresa ficou em dúvida se me contratava ou não, pois temia que os clientes não aprovassem a presença de uma mulher negra na recepção.

Essas histórias vão ao encontro dos dados recentes sobre as barreiras encontradas por homens e mulheres “de cor” para conseguir emprego, sobretudo, formais. De acordo com o IBGE, pretos e pardos são maioria em setores cujas funções exigem atividades braçais, como agropecuária (60,8%), construção civil (63%) e serviços domésticos (65%). Por outro lado, são sub-representados em cargos considerados de maior prestígio social, como informática (31%), arquitetura e engenharia (26,9%) e gestão empresarial (23,6%). Números do IBGE também apontam que apenas 10% dos afro-brasileiros ocupam cargos de chefia nas grandes empresas. Quando chegam lá, os brancos que exercem a mesma função têm rendimentos até 50% maiores.

Meses atrás, quando eclodiram as manifestações de repúdio ao assassinato de George Floyd, escrevi nas redes sociais que se declarar antirracista é importante, mas não o suficiente para superar o racismo estrutural, que faz do Brasil um dos países mais desiguais e perversos do mundo. Pontuei que uma forma de as empresas atuarem, de fato, na luta pelo fim das desigualdades raciais seria por meio da adoção de políticas de ação afirmativa. É exatamente isso que o Magazine Luiza fez. Para fazer frente a essas injustiças que empurram a população negra para a miséria e para a pobreza, o Magalu lançou na semana passada um programa de trainees que tem por objetivo contratar somente candidatos negros. Tal ação já é adotada em países como Estados Unidos, Canadá e Nova Zelândia desde os anos 1960.

Bastou o anúncio do processo seletivo para que uma horda de defensores do discurso da meritocracia se lançasse contra a iniciativa, taxando-a de “racismo reverso”. Faço uma pausa para lembrar das palavras da Isabela, uma ex-aluna que, com a sabedoria de quem tem 13 anos, disse: “Professora, é claro que não existe racismo contra os brancos. Até mesmo porque foram eles que inventaram o racismo!”.

Entre os que se lançaram contra a louvável medida de combate ao racismo no meio empresarial, está um deputado federal, cujo nome não merece ser mencionado. O parlamentar entrou com uma representação no Ministério Público para banir o processo seletivo da empresa liderada por Luiza Trajano. No sábado 19, a juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça escreveu em sua conta no Twitter que a ação era “inadmissível”. Em razão da repercussão negativa do comentário, a postagem foi apagada horas depois. Nos principais jornais do país, uma série de artigos caminhou na mesma linha de pensamento defendida pela magistrada que atua em Minas Gerais.

A oposição à iniciativa da empresa varejista me fez lembrar da detração sofrida pela política de cotas. No início dos anos 2000, quando universidades públicas passaram a reservar vagas em seus vestibulares para pretos e pardos e, assim, reparar uma dívida histórica com esse segmento populacional, uma campanha odiosa foi levada a cabo por juristas e órgãos da imprensa, de modo a impedir que a justiça racial fosse feita.

Artistas, intelectuais e professores assinaram o que ficou conhecido como “Manifesto contra as cotas”, dentre eles, Caetano Veloso, Lilia Schwarcz, Demétrio Magnoli, Ferreira Gullar e Mirian Goldenberg. Em 2005, o jornalista Luis Nassif escreveu em sua coluna na “Folha de S.Paulo”: “O Brasil não merece isso! E, quando se entram com políticas compensatórias raciais – como é o caso das cotas para negros em universidades ¬–, começa a se dar legitimidade institucional a esse racismo. Pode-se discutir ou não a legitimidade de cotas para alunos de escolas públicas, cotas para pobres, mas não cotas para negros. (…) As cotas raciais, assim como a elegia a esse racismo negro, são uma ameaça concreta que precisa ser abortada no berço. Não se pode cair na esparrela da dívida histórica para tornar mais deserdados ainda os simplesmente pobres.”

Nada disso me surpreende. O ódio em relação às cotas e agora à medida de inclusão racial promovida pelo Magazine Luiza revela as entranhas de uma sociedade que não abre mão do passado escravista e se esconde sob o signo de uma suposta “democracia racial”. Embora as pesquisas de órgãos governamentais revelem que, passados mais de 130 anos da abolição, o exercício da cidadania continua sendo sistematicamente negado aos negros, comentários na internet expõem o desejo de manter a maior parte da população em verdadeiras senzalas, assim como ocorreu ao longo de quase quatro séculos.

Como sempre, o antropólogo Kabengele Munanga estava certo ao afirmar que “qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberá um apoio unânime, sobretudo quando se trata de um país racista”. Contudo, é preciso lembrar que não temos medo de gritaria ou cara feia. Apesar de todas as tentativas cotidianas de nos desumanizar, chegamos até aqui. Não vamos retroceder. Reivindicamos o direito de ser e de existir, como também a igualdade de participação e escolha. No momento em que finalizava esse artigo, soube que grandes empresas como a Bayer, a Vivo e a Diageo aderiram a programas que visam a diminuir o abismo que separa brancos e negros no Brasil.

Que venham mais ações como a do Magazine Luiza!

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