Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Promover uma educação antirracista exige estudo, compromisso e sensibilidade

Não podemos conceber que obras como ‘Abecê da Liberdade’ adentrem nas salas de aulas

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Na última semana, causou repúdio e indignação a divulgação de trechos de Abecê da Liberdade, escrito a quatro mãos por José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta.

Reeditada pela Companhia das Letrinhas, a obra inicialmente lançada pelo selo Alfaguara (Objetiva), em 2015, propõe-se a contar a história do escritor e advogado abolicionista Luiz Gama, uma das maiores referências da comunidade negra brasileira. Para se defender das acusações legítimas em relação ao caráter racista do livro, Torero chamou de “ironia” trechos em que crianças escravizadas brincam em um navio negreiro, como se o empreendimento colonial que desumanizou milhões de negros – e lhes impôs a fome, a miséria e a violência ao longo de quase quatro séculos – fosse uma aventura alegre e divertida.

Nesse ponto, mais uma vez, chama-me a atenção a maneira com a qual indivíduos brancos se sentem autorizados a nos desrespeitar, violentar e perpetuar o processo de humilhação a que negros e negras são submetidos cotidianamente. Na página 27 de Abecê da liberdade, lê-se: “A viagem pelo mar foi tranquila. Não houve nenhuma tempestade e o navio não balançou. Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade) e até pulamos corda, ou melhor, corrente”.

Os debates em torno da imoralidade e do desserviço do livro, que deixou de ser comercializado pela Companhia das Letrinhas após a repercussão negativa na mídia, fizeram-me refletir também a respeito da promoção e efetivação de uma educação antirracista. Uma questão cada vez mais debatida no país, dada a urgência de se combater o racismo e superar as desigualdades raciais no âmbito educacional, que anualmente impedem milhares de estudantes afro-brasileiros de alcançar êxito, contribuindo para que os índices de reprovação e abandono escolar sejam maiores entre esse grupo.

Por ter sido lançado originalmente há seis anos, muito provavelmente Abecê da Liberdade foi utilizado como recurso pedagógico em muitas salas de aulas, contribuindo para a deturpação e romantização da escravidão, período de nossa história que, passados mais de 130 anos da assinatura da Lei Áurea, permanece nos assombrando e, ainda hoje, orienta as relações entre negros e brancos no país.

Pensando no descalabro do livro, fica evidente que em se tratando do cumprimento da Lei 10.639, que em 2003 tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em sala de aula, apenas boa vontade não basta. Promover uma educação orientada pelos princípios da justiça, da diversidade e da equidade racial requer estudo, compromisso e sensibilidade. Ao citar esses três requisitos, não deixo de levar em consideração que é fundamental a mobilização de toda a sociedade, como também políticas públicas de valorização e formação inicial e continuada dos professores.

Para ressaltar a importância de se dedicar ao estudo da temática racial como condição fundamental para uma educação comprometida com o fim dos preconceitos e das discriminações motivadas pela cor da pele, recorro ao pensamento do mestre Paulo Freire, que, se estivesse vivo, completaria 100 anos no dia 19 de setembro. O educador pernambucano lembra que “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro”.

 

Graças à atuação sobretudo de docentes e intelectuais negros, atualmente há uma oferta grande de materiais, pesquisas e cursos de pós-graduação que podem subsidiar o trabalho de professores e gestores. Como o mote desta coluna é o abominável livro dos autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, recomendo o Portal Literafro como valiosa ferramenta pedagógica de combate ao racismo em sala de aula e (re)conhecimento de escritores e escritoras negras do nosso país. No site, é possível encontrar biografias e trechos de obras de autores afrodescendentes como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Geni Guimarães, Maria Firmina dos Reis, Luiz Cuti Silva, Cruz e Souza, Lima Barreto, o próprio Luiz Gama e tantos outros, que na maioria das vezes são invisibilizados nos livros didáticos e nos planos de ensino.

Pesquisas recentes dão conta de que crianças e jovens negros são “apedrejados moralmente” de maneira incessante nas escolas. Um levantamento apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que, somente em 2019, 10 milhões de jovens não concluíram o ensino médio. Desse total, 70% eram negros. Estudo importante divulgado pela Fundação Tide Setúbal, em 2020, mostrou que os meninos negros são os que apresentam as notas mais baixas em classes do 5º Ano de escolas municipais da cidade de São Paulo. Em penúltimo lugar, ficaram as meninas negras. Esses dados demonstram que o acesso ao ensino de qualidade tem sido sistematicamente negado aos não brancos. Conforme escrevi acima, mudar essa realidade perversa demanda o compromisso de todos, sendo os educadores parte fundamental desse processo.

Amparada no brilhantismo do comunicólogo e ativista do Movimento Negro Muniz Sodré, defendo fortemente que a promoção de uma educação antirracista exige sensibilidade, que nos leve à indignação, à promoção de medidas capazes de fazer frente aos abismos, às violências e às exclusões que o racismo tem promovido no espaço escolar. Sem reconhecer que somos parte de uma sociedade extremamente racista, que contamina nossas práticas e discursos, como também a maneira com que nos relacionamos com os estudantes negros, dificilmente iremos avançar.

Não podemos conceber que obras como Abecê da Liberdade adentrem nas salas de aulas. Para que isso não aconteça e possamos oferecer aos nossos estudantes uma educação antirracista que mereça esse nome, reitero que é imprescindível estudo, compromisso e sensibilidade.

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