Silvia Maria

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Pedagoga com 30 anos de experiência na área da Educação no município de São Paulo. Foi Coordenadora Pedagógica, Supervisora Escolar 10 anos. Supervisora Técnica por 4 anos. Diretora da Divisão de Normatização Técnica da Secretaria Municipal de Educação.

Opinião

Preferir fuzil a feijão só pode ser uma opção de quem não sabe o que é a fome

Há muito tempo não via nos jornais uma sociedade tão precarizada quanto a atual

O presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Milhares de pessoas passando fome no Brasil e, na última sexta-feira, a autoridade máxima da nação afirmou o seguinte: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”.

Uma frase como essa só pode ser dita por alguém que nunca vivenciou a fome e também não se importa com aqueles que convivem com ela, diariamente. Prioriza a compra de um fuzil quem tem saudades da escravização e despreza o que escreveu Carolina Maria de Jesus: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.

Há muitos anos que não via imagens como as que estão atualmente nos noticiários: famílias vivendo de doações de alimentos, precisando utilizar lenha para cozinhar, enfrentando filas nos açougues a espera de doações dos ossos ou gorduras retiradas das carnes que serão vendidas e frequentando as feiras existentes pelas cidades, carregando nas mãos sacolas na esperança de receberem qualquer tipo de alimento danificado, que não foi escolhido para estar na mesa de quem pode pagar e escolher.

Me lembrei da minha infância, na década de 70, quando minha mãe eventualmente, acendia um punhado de carvão com álcool e colocava em uma panela água e açúcar para fazer um melado e em outra torrava um pouco de farinha. Ela servia a mesa com a farinha torrada, o melado, pão, margarina e explicava para os seis filhos que o gás havia acabado, mas em breve haveria comida de verdade.

Não esqueço do olhar de minha mãe, que não conseguia esconder de nós a tristeza e preocupação. Penso que os sentimentos de minha mãe é hoje o que os estudiosos definem como “Insegurança alimentar”, que em outras palavras é não ter a certeza que comerá durante algum período, que pode ser curto, médio ou tempo demais para esperar. Em minha casa esses períodos foram curtos, mas existiram o suficiente para que eu aprendesse o significado da fome.

Milhares de brasileiros estão lutando contra a fome, mas nas periferias existentes Brasil a fora, dentre elas a que eu vivo na cidade de São Paulo, frequentar as grandes redes de supermercados e magazines, é um comportamento atualmente quase que inexistente.

As compras são feitas junto a pequenos produtores que são esperados nas ruas e tratam as pessoas pelo nome. O código de barras e a fila no caixa, onde é imprescindível ter o dinheiro no bolso ou um cartão de crédito com limites, é substituído pelo diálogo, que possibilita a anotação do nome para pagamento posterior, se necessário e até mesmo a oferta de um serviço em troca por algum produto.

O jovem da bicicleta com o cesto de pães, o carro do ovo, das frutas e verduras, doce caseiro, produtos de limpeza, dentre muitos outros tem dia e horário para passar e é esperado. Quem dirige os veículos e quem auxilia nas vendas, conhece os moradores e é possível negociar. A antiga caderneta de fiado, tão comum na minha infância, nas periferias não deixou de existir.

Não é preciso baixar aplicativos que precarizam o trabalho dos entregadores, mas que rende uma fortuna de impostos aos cofres públicos e as redes de hipermercados, tão pouco ter acesso a internet. É necessário estar no portão, nas janelas ou até mesmo combinar com o vendedor antecipadamente e os produtos serão entregues dentro da sua casa, como é o caso da minha vizinha idosa, que tem dificuldades de locomoção em decorrência de uma deficiência física. Paga-se muito menos e a qualidade dos produtos é muito boa.

A economia solidária que tem como base os empreendimentos coletivos, cooperativas, grupos de pequenos produtores e sociedade mercantil, como por exemplo os  pontos de comercialização com produtos da Reforma Agrária vindos dos assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem alimentado e sido fonte de renda para milhares de brasileiros nesse país, que tem como governante principal, alguém que deveria apresentar a sociedade um projeto que priorizasse uma Política de Segurança Alimentar.

Contudo, parece que o chefe da nação prefere sadicamente, dar continuidade ao projeto de extermínio dos indesejáveis, exibindo ao mundo um show de horrores onde, como também escreveu Carolina Maria de Jesus  “o maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. Hoje, eu até posso comprar uma arma, mas prefiro a vida e o feijão, que com cominho e maxixe fica uma delícia!

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