Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Por uma infância sem racismo, “Chapeuzinho Vermelho e o Boto Cor-de-Rosa”

Que através da literatura, possamos resgatar e elevar a autoestima das crianças negras, de modo que elas cresçam confiantes

Chapeuzinho Vermelho e o Boto Cor-de-Rosa
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Para Betha, com amor, carinho e esperança.

Somente em 2013 foi sancionada a Lei n. 12.796, que tornou obrigatória a matrícula de crianças na Educação Básica a partir dos quatro anos de idade. Desse modo, na ausência de escolas públicas de ensino infantil, ingressei em uma escola particular em 1988, o exigiu muito esforço dos meus pais para pagar as mensalidades.

Assim como milhões de meninas e meninos, fui alfabetizada com a obra de Monteiro Lobato. Descobrir que eu sabia ler foi uma das experiências mais marcantes de toda a minha vida. Lembro do momento em que li a frase “que perigo!” como se fosse hoje. Senti um furacão dentro mim. Por outro lado, causava-me tristeza ser chamada de Tia Nastácia, alvo constante das “travessuras” da boneca Emília. Em um trecho do livro “Reinações de Narizinho”, a personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo é descrita da seguinte maneira:

“Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, Dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então, o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura.” 

Às sextas-feiras, dávamos uma pausa nas histórias lobatianas para ouvir justamente contos sobre as princesas loiras: Rapunzel, Cinderela e A Bela adormecida eram alguns dos livros lidos pela minha professora. Dessa forma, assim como Tia Nastácia, vivia na esperança de que em algum momento poderia me transformar em uma princesa dos enredos infantis.

Enquanto isso não acontecia, pedia a minha mãe e a minha avó que amarrassem um lenço, uma toalha na minha cabeça para viver a fantasia de ter cabelos lisos e longos. Quando cresci um pouco, toda noite, antes de dormir, pedia a Deus que me transformasse em uma menina branca, pois assim meus colegas deixariam de dirigir a mim apelidos que depreciavam a cor da minha pele. Já adolescente, fiquei impressionada quando vi uma prima repetir o ritual de amarrar panos no cabelo. Quando o tecido caía, ela chorava copiosamente.

Com a figura de Tia Nastácia, várias gerações de negras e negros aprenderam a rejeitar a pertença racial, uma vez que a cozinheira dos livros de Monteiro Lobato era sempre representada como uma pessoa dotada de baixa capacidade intelectual, subalterna, “feia”, e merecedora das ofensas de Emília. Ao passo que Rapunzel, Cinderela e a Bela Adormecida ensinam ainda hoje que a beleza tida como ideal é algo pertencente somente às meninas brancas e de olhos azuis.

Desse modo, o racismo contido em obras da literatura infantil têm sido um instrumento eficaz para demolir a autoestima das crianças negras, conforme pontuou a educadora e escritora Kiusam de Oliveira. Apesar das mudanças recentes do mercado editorial, ocorridas, sobretudo, pelas pressões do Movimento Negro, ainda são em pequeno número os livros voltados para a infância, cujo enredo é protagonizado por afro-brasileiros. Em 2007, a pesquisadora Eliane Debus mapeou 1785 títulos. Desse montante, apenas 79 traziam personagens negras. Não se ver representada ou perceber-se como algo indesejado e negativo pode trazer marcas dolorosas que as crianças negras carregarão pelo resto da vida.

Na contramão desse processo de invisibilidade e violência racial, recentemente, a Mazza Edições lançou Chapeuzinho Vermelho e o Boto Cor-de-Rosa, releitura do clássico francês em que a protagonista é uma menina negra. A história narrada por Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho se passa nas margens do rio Negro, na Amazônia. Além de linda, Chapeuzinho é esperta e generosa. Com sua avó, mantém um laço de muito afeto. Em vez de doces, na sua cesta, carrega alimentos típicos da região Norte do Brasil, como tacacá, tucumã, abiu e camu-camu. No lugar do caçador, um boto assume a condição de vilão da narrativa. 

Chamo a atenção para a qualidade das ilustrações. Em diversos momentos, Chapeuzinho Vermelho aparece sorrindo, rodeada pelos animais da floresta e acolhida pela mãe. Não basta que os livros infantis tenham crianças negras em suas páginas. É necessário que as imagens e as histórias estejam alinhadas com a construção de identidades positivas, como também com a afirmação de referenciais de beleza que contemplem a pluralidade étnico-racial existente no país.

Na semana passada, por meio da internet, conheci a pequena Betha, que assim como a Titi Gagliasso, nasceu no Malawi. Fiquei tão encantada por ela, que pedi ao pai o endereço para que eu pudesse enviar um exemplar de Chapeuzinho Vermelho de presente. Betha tem dois anos. O livro chegou ontem. Da Lara, mãe da Betha, recebi a seguinte mensagem: “Luana, sou a mãe da Betha. Obrigada pelo presente e pela luta! Logo que ela pegou o livro Chapeuzinho Vermelho e o boto cor-de-rosa, me mostrou a capa e falou: ‘olha a Betha mamãe’”. Como não poderia deixar de ser, fiquei grata, emocionada.

No final da história, o boto sequestra Chapeuzinho Vermelho e a arrasta para dentro do rio Negro. A menina é resgatada por um pescador. Que através da literatura, possamos resgatar e elevar a autoestima das crianças negras, de modo que elas cresçam confiantes, orgulhosas de sua origem racial, de sua história, do cabelo, dos traços fenotípicos que carregam. Representatividade importa. Minha querida Betha não me deixa mentir.

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