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Por que liberais ignoram o embargo econômico contra Cuba?

Ignorar os efeitos concretos do embargo econômico na vida dos cubanos não é fruto da falta atenção, mas de um método com fins muito claros

População cubana é a mais afetada por bloqueio econômico dos Estados Unidos. Foto: Yamil Lage/AFP
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Um veterano colunista do UOL se manifestou assim sobre os acontecimentos recentes em Cuba: “O torniquete econômico imposto pelos americanos a Cuba é criticado pela maioria dos países ao redor do planeta. Mas apenas os líderes políticos mequetrefes continuam fieis à ditadura cubana, que oferece ao povo da ilha miséria, carestia e o direito à liberdade absoluta de se deixar mandar”. Na mesma linha, certo parlamentar da direita ex-bolsonarista questionou no Twitter até quando o bloqueio econômico imposto pelos EUA permanecerá sendo suscitado como um problema. Um terceiro propagandista liberal foi mais ousado: comparou o embargo contra Cuba com o “auto-embargo” que outras nações adotariam ao promover políticas de industrialização, supondo que essa medida é ruim pois afastaria o desenvolvimento econômico.

Lenin ensinou que a análise concreta de uma situação concreta é o pressuposto de qualquer ação verdadeiramente revolucionária. O contrário também soa verdadeiro: fantasias parecem ser a arma quente do reacionarismo. Abstrair fatos reais – ou, no caso, os efeitos concretos do embargo econômico na vida dos cubanos – não é fruto da falta atenção, mas de um método com fins muito claros. A abstração deliberada é o coração e o cérebro desses propósitos reacionários, que, sem ela, não passam de um saco vazio. Parte do povo cubano está sim nas ruas clamando por melhores condições de vida. Porém, embora seja óbvia a ligação lógica entre o desabastecimento da ilha e o assédio e as sanções diplomáticas, políticas e econômicas que os EUA impõem contra quem tente manter relações com ela, reconhecer isso implica em tirar o calço no qual se sustenta o mais vulgar anticomunismo.

A abstração está tanto lá quanto aqui. O dedo apontado para Cuba pressupõe o paraíso de quem decidiu andar por caminho diverso, qual seja, o da austeridade fiscal, das reformas trabalhista e previdenciária e do desmonte dos serviços públicos. A vida real, contudo, engole o livre-cambismo neoliberal: há 116 milhões de pessoas que, no Brasil de hoje, são obrigadas a pular uma refeição por dia.

No mesmo Brasil, outras 19 milhões estão em situação alimentar ainda mais delicada. Temos aí quase 130 milhões de brasileiros passando fome, bem mais da metade da nossa população e mais de dez vezes superior à de Cuba.

Aqui, diferente de Cuba, não há embargo. Os detratores do regime cubano, em sua preocupação de última hora com a carestia na ilha, parecem esquecer da sua própria sala-de-estar. Talvez porque a fome em nosso país decorre exatamente da aplicação do programa econômico que defendem, o mesmo que tomou forma a partir do golpe de 2016. Não foi Paulo Guedes que, na campanha de 2018, afirmou que faria o mesmo que Temer, só que pisando no acelerador? O Haiti é aqui, canta Caetano Veloso. Cá como lá, não houve revolução.

Convém repetir: a abstração dos liberais em analisar a realidade é método, não deslize. E não é de hoje. O filósofo italiano Domenico Losurdo explica em suas obras como o colonialismo e o imperialismo são os maiores recalques históricos do liberalismo. Nessa perspectiva, a construção dos fatos pela intelectualidade orgânica da burguesia costuma passar ao largo da história, tentando reescrevê-la de modo a vislumbrar um mundo no qual as nações do capitalismo central ocupariam tal posto em função de líderes virtuosos e escolhas políticas certas, sem qualquer sinal de violência. Tais escolhas, obviamente, correspondem ao evangelho do livre-mercado e aos valores da democracia liberal, tidos como universais.

Havana, em Cuba – Foto: YAMIL LAGE/AFP

Com esse raciocínio, pode-se concluir que os países periféricos (que, não custa lembrar, são maioria no planeta) são pobres em virtude de escolhas erradas ou da ausência quem os conduzisse rumo ao progresso.

Mais uma vez, o imperialismo e o colonialismo são escondidos debaixo do tapete: a América Latina teria estacionado no subdesenvolvimento em função do caudilhismo e do populismo; Ásia e África, por sua vez, não teriam atingido o desenvolvimento econômico nos níveis do chamado primeiro mundo em função de sua política rudimentar e seu pendor antidemocrático, refratário aos cânones do liberalismo da democracia burguesa. O farol do capitalismo e do livre-mercado sempre esteve no mesmo lugar. Se não foi seguido foi porque não quiseram (como se todas as grandes potências capitalistas não tivessem se valido de investimentos públicos irrigados em boa parte pela rapina colonial…)

Com esse método, todo o histórico de imperialismo e genocídio é apagado da história do capitalismo. A matança de dezenas de milhões de nativo-americanos na colonização do oeste dos EUA é esquecida ou, no máximo, mostrada como um fenômeno que nada tem a ver com a acumulação primitiva do capitalismo estadunidense. Tampouco a colonização de quase todo o planeta pela Inglaterra tem relação com a posição desta na divisão internacional do trabalho e muito menos com o acúmulo de riquezas que tornou possível o salto tecnológico que levou às revoluções industriais. Se a população francesa é hoje composta em sua boa parte por afrodescendentes, tal não teria nenhuma ligação com o fato da França ter colonizado países como Camarões e Costa do Marfim.

A abstração como método e a crença infantil na legalidade burguesa fez Carl Schmitt, jurista e filósofo de direita, repudiar a tradição liberal de separar a política do direito. Schmitt era a favor da suspensão das regras do direito internacional na reação às lutas de libertação nacional. Isto porque, dada sua inspiração na Revolução Russa, seriam uma extensão desta, o que configuraria uma guerra civil internacional permanente. As posições de Schmitt são execráveis, mas honestas na medida em que não tenta enquadrá-las na moldura vulgar da legalidade burguesa.

Schmitt sabe que é a força – bélica, inclusive – que decide e está acima de qualquer platitude constitucional, apesar do liberalismo buscar a todo custo mascarar que, por trás do “império da lei”, há tiro, porrada e bomba. É isso que os EUA tentam esconder em relação à Cuba. A ilha caribenha há sessenta anos é uma pedra no sapato do seu vizinho de cima, que vem buscando desestabilizá-la política e economicamente seja com atentados terroristas, financiamento de grupos paramilitares, distribuição de propaganda contrarrevolucionária e estímulo a movimentos anticastristas. A lista é extensa e passa, inclusive, por mais de seiscentas tentativas de assassinar Fidel Castro.

Os protestos recentes em Cuba vêm sendo um prato cheio para os EUA e suas franjas ideológicas como as direitas liberal e bolsonarista. Em sua conta no Twitter, o ex-capitão vomitou uma série democratismos toscos contra a ilha, confundindo-se com os liberais, ex-apoiadores seus, que hoje tentam construir uma terceira via para as eleições de 2022. A esquerda liberal também se refestela, posando de isenta frente ao imperialismo ao adotar a sonolenta “teoria dos dois demônios” e se afirmar contra “ditaduras tanto de esquerda quanto de direita”. O Departamento de Estado agradece.

Análise concreta de uma situação concreta: Cuba sentiu os efeitos da pandemia, acentuados em função do embargo econômico que os EUA promovem desde 1962. Parte da população saiu às ruas para protestar contra o governo cubano sem, aparentemente, considerar que o bloqueio não deixou de ser um problema durante a crise sanitária (o que nos leva à real e historicamente factível hipótese de intervenção dos EUA na origem dos protestos).  Em 2020, o empresário chinês Jack Ma enviou à Cuba kits de testes para diagnosticar a Covid-19 e respiradores para ajudar no combate à pandemia. A transportadora, entretanto, deixou de entregar o pedido em função da Lei Helms-Burton. Criada em 1996, a norma institui que embarcações estadunidenses que ancorem em Cuba devem ser multadas. Sob Trump, a lei foi atualizada no sentido de ser possível a abertura de processos judiciais contra quem a viole. As restrições não se limitam aos EUA. Negociar com Cuba, por vezes, se torna uma verdadeira operação de guerra.

O recalque histórico do imperialismo ganha projeção na abstração que os opositores do socialismo cubano fazem do embargo imposto pelos EUA, aprofundado por Trump e mantido por Biden. É seguro afirmar que qualquer análise política e econômica sobre Cuba que o ignore é desonesta. Em “Guerra e Revolução: o mundo um século após outubro de 1917”, Losurdo destaca a food diplomacy (diplomacia alimentar), abertamente teorizada pelos EUA, que se baseia na “penúria induzida” via o impedimento da chegada de bens alimentícios e de primeira necessidade aos países embargados. China e Iraque estão entre os países que, além de Cuba, foram alvo dessa política.

Enquanto isso, a Organização das Nações Unidas, que em junho condenou o embargo econômico pela 29ª vez, menos de um mês depois defendeu as manifestações em Cuba sob a justificativa de que “queremos direitos básicos das pessoas sejam respeitados”. A mesma ONU que considera genocídio “a submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”. Adeptos do liberalismo, inclusive à esquerda, não ignoram o bloqueio à toa. Levá-lo em conta implica em reconhecer como o “império da lei” e a democracia liberal, expressão política do modo de produção capitalista, têm a solidez de um castelinho de areia.

“O imperialismo se chama globalização. As vítimas do imperialismo se chamam países em via de desenvolvimento”, escreveu Eduardo Galeano. Nesse léxico, liberdade e democracia é tentar matar o povo cubano de fome e doença para poder dizer que o “socialismo não funciona”, louvando, ao fim, as formas políticas do capitalismo. Afinal, não são eternas e imutáveis?

Há mais de meio século Cuba vem provando que não.

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