Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Por que Bolsonaro insiste na conversa de fraude nas eleições?

‘O bolsonarismo sabe atuar com eficiência na guerra do caos, da confusão, do desnorteio’, escreve Camilo Aggio

Foto: EVARISTO SA / AFP
Apoie Siga-nos no

Nesta semana, o presidente dessa nossa mórbida república (assim em minúsculo mesmo), que continua enterrando milhares por dia em decorrência da pandemia, resolveu ressuscitar com veemência a prosa já antiga de que tanto se valeu no decorrer de 2018: a de fraude eleitoral por meio do sistema brasileiro de voto eletrônico. Ainda que tenha ares de bravata vinda de um notório bocarrão, creio ser importante compreender as razões pelas quais Jair Bolsonaro insiste nesse factoide e quais as possíveis e reais consequências disso.

Em primeiro lugar, os fatos não deixam dúvidas. Jair Bolsonaro, noves fora o pleonasmo, não embute qualquer sinceridade na alegação de que as urnas eletrônicas têm sido instrumento para fraudar a vontade da maioria. Do mesmo modo que não há menor sinceridade na confiança que diz depositar no voto impresso. Como mostra o jornalista Alexandre Aragão em O Globo, há 25 anos Jair Bolsonaro defendeu a informatização da apuração de votos para combater, adivinhem só: fraudes eleitorais

Não precisamos sequer entrar nas tecnicidades que envolvem o sistema eletrônico de voto no Brasil – referência de eficiência mundo afora e, ao contrário do que diz o presidente, é auditável – para abordar a questão. Isso porque a alegação que faz Jair Bolsonaro, em tom de ameaça, não tem qualquer razão amparada nos fatos e nas evidências: nos EUA, seu baluarte de (i)moralidade venceu as eleições com voto impresso. Aqui, ele se elegeu com 58 milhões de votos, batendo um candidato do PT, por meio do voto eletrônico. De modo que, se houve fraude, lá e cá, a fraude só pode ter favorecido a eleição da extrema-direita popuista fascistóide. Questão de lógica e de honestidade intelectual.

 

E o que está por trás de tudo isso? Três coisas que, em grande medida, se sobrepõem. A primeira é a constatação da queda paulatina de sua popularidade e o medo de que seu projeto de reeleição esteja indo para o buraco com Luis Inácio Lula da Silva não apenas voltando ao páreo, como despontando como franco favorito para 2022 com folga no segundo turno, como mostrou o DataFolha nesta semana com base em pesquisa de campo presencial. A retórica da fraude, portanto, serve a um único propósito: dizer que só há um resultado possível e autêntico: sua reeleição.

A segunda é obra já conhecida: a tática do diversionismo. Tal como sempre acontece em qualquer situação politicamente desfavorável, Jair Bolsonaro e seus asseclas (acepipes, no dicionário de Abraham Weintraub) se dedicam a produzir episódios que dividam a atenção pública de modo a tentar reduzir a repercussão daquilo que os desfavorece. A razão do momento é a condução da CPI da pandemia no Senado Federal que, em pouco tempo, já coleta evidências robustas de que o governo federal preferiu mais doentes, mais mortos, mais hidroxicloroquina e ivermectina à vacina. Até aqui, os trabalhos da Comissão estão colocando o presidente e seu governo em maus lençóis.

A terceira diz respeito ao “caos como método”, como bem descreve Marcos Nobre. O bolsonarismo sabe atuar com eficiência na guerra do caos, da confusão, do desnorteio, porque é aí que descontextualizações, mentiras e falsidades podem melhor se acoplar às mentes e corações das mobilizações e militâncias políticas numa esfera pública dominada pela poluição e pela confusão. Não é à toa que os discursos negacionistas do presidente guardam correlação direta com um maior número de desrespeito ao isolamento social, contaminação e mortes pela Covid-19.

E eis aqui o aspecto que julgo mais importante nessa história antes que cedamos aos diagnóstico simplório de que a tentativa de desqualificação do nossos sistema eleitoral se resuma a uma bravata sem maiores consequências práticas. Atacar o sistema eleitoral é parte de um conjunto de esforços que Jair Bolsonaro emprega há muito seguindo uma cartilha do populismo fascista: desqualificar as instituições democráticas, sob a alegação de defesa da democracia, para subverter o regime democrático: seja de forma radical, seja de forma incremental, homeopática. E o discurso da fraude eleitoral cai feito uma luva para a base bolsonarista que despreza valores liberais, o regime democrático, a separação dos Poderes.

Alguém pode argumentar que Donald Trump tentou fazer o mesmo nos Estados Unidos, mas não conseguiu. Eu insisto que fazer essa comparação é não distinguir maças de laranjas. Comparar a democracia americana com a democracia brasileira, sob quase todos os aspectos, é confundir realidade com ficção. As instituições americanas possuem uma tradição secular, incluindo o sistema partidário, mas principalmente o instituto eleitoral, as forças armadas e os órgão policiais que, ao menos até aqui, conseguem ser blindados de maiores influências políticas. O extremo oposto do que tem sido, cada vez mais, a história das instituições brasileiras. Donald Trump não tinha estatura nem estrutura suficientes para ganhar uma guerra contra a democracia americana. No entanto, talvez Jair Bolsonaro tenha chances contra a democracia brasileira.

Isso porque ainda possui uma base civil e radical bastante capilarizada na sociedade brasileira. Mas não apenas. Possui milhares de militares ao seu lado, como bem lembrou Dias Toffoli a Rosa Weber no episódio do julgamento do habeas corpus de Lula, como está descrito no livro Os Onze. Possui, igualmente, milhares de policiais e suas famílias prontos para defende-lo do que podem imaginar ser um golpe eleitoral. E conta, obviamente, com instituições que funcionam muito aquém de suas prerrogativas e expectativas ao ponto de nunca terem feito, exemplarmente, o presidente declarar que não possui qualquer prova de fraude eleitoral em 2018 que alega ter existido.

Só para concluir nos termos certos: ao acusar nosso sistema eleitoral de fraudulento e pregar a volta do voto impresso, tudo o que Jair Bolsonaro e sua manada querem é promover uma fraude que o mantenha no poder. Acusar fraude para fraudar é o lema. E há uma dupla utilidade nessa estratégia: se mantiverem o voto eletrônico, essa já seria a prova de fraude; se adotarem alguma forma de impressão de voto, estarão abertas oportunidades de ouro para colocar o processo eleitoral sob suspeição utilizando de todas as táticas para dificultar contagem e auditoria de votos, bem como criar falsos casos e provas de fraude para criar um clima de opinião favorável a suas pretensões golpistas.

Como sempre defendi, a primeira lição para lidar com Jair Bolsonaro é: não subestime o bolsonarismo e observar que as instituições deixam essa narrativa correr solta porque aparentemente inofensiva parece exatamente o contrário. E isso não é bom.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.