João Montenegro

Jornalista, pesquisador e mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ

Opinião

Por que as forças armadas brasileiras se deixaram associar à patacoada bolsonarista?

Como de praxe, a questão recai sobre poder e dinheiro, sob a moldura de uma anacrônica subserviência aos EUA

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia militar. Foto: Marcos Corrêa/PR
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As forças armadas são um pilar do Estado Nacional, atuando como garantidor básico da soberania no sistema interestatal consagrado pelo Tratado de Westfália

Mas, se já não cabe a Exército, Marinha e Aeronáutica cuidarem, ao menos ordinariamente, da segurança pública, muito menos é seu papel o de governar. Em nenhuma democracia madura do mundo isso acontece. Pelo contrário, em países sérios, são muito bem definidas as linhas que separam as forças armadas e o governo de plantão, uma vez que se tratam de instituições de Estado.

No ano passado, o chefe do Estado Maior dos EUA, general Mark Milley, foi a público pedir desculpas após ter participado de caminhada com Donald Trump para posar para uma foto em frente a uma igreja, num ato político do presidente norte-americano em meio a protestos contra o racismo no país.

“Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”, declarou Miley na ocasião.

Apesar do exemplo que vem da grande referência civilizatória do bolsonarismo, o presidente brasileiro abriu as portas para mais de 6 mil militares assumirem cargos no governo federal, desde assessorias de comunicação e jurídicas a chefias de ministérios, órgãos ambientais, agências reguladoras e empresas estatais, entre outros postos que nada tem a ver com suas especialidades.

Com frequência, Jair Bolsonaro se refere às forças armadas como sua propriedade, explorando as supostas “costas quentes” para, implícita e explicitamente, ameaçar outros poderes da república sempre que estes o contrariam.

Em uma democracia séria, os comandantes das três forças teriam publicamente cortado as asas do presidente em qualquer referência feita por ele a possíveis manobras “fora das quatro linhas da Constituição”, ainda que no plano mais delirante das ideias para agitar seu “cercadinho” e base ideológica.

 

Por aqui, contudo, não satisfeitos em terem embarcado em uma aventura política que deixará mais uma vexatória marca na história das FFAA brasileiras, altos quadros militares da ativa e reserva seguem apoiando arroubos autoritários de Bolsonaro, inclusive se manifestando em searas que absolutamente não lhe dizem respeito, como a tresloucada discussão sobre o voto impresso.

E tudo isso a troco de quê?

Em governos democráticos anteriores, os militares brasileiros tiveram protagonismo na política externa do país, participando de iniciativas conjuntas com o Itamaraty visando à projeção geopolítica do Brasil na América Latina e no Oeste Africano, enquanto elevavam seu status junto à ONU ao liderarem missões internacionais de paz.

Durante as gestões federais de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, o orçamento total do Ministério da Defesa subiu anualmente, sem exceções, passando de R$ 25,7 bilhões em 2003 para R$ 102,9 bilhões em 2017. Em 2020, pela primeira vez na série histórica, o orçamento caiu, de aproximadamente R$ 112 bilhões para R$ 111,1 bilhões.

Hoje, as FFAA brasileiras estão diretamente associadas a um governo que conduz uma diplomacia medíocre e subserviente, de início automaticamente alinhada a um presidente norte-americano que abalou a democracia local, e que, posteriormente – já gozando da condição de pária internacional – vê seu isolamento geopolítico aumentar ainda mais com a chegada de Joe Biden ao poder.

Para além de possíveis reflexos da guerra híbrida manejada pelos próprios EUA, na qual buscam desestabilizar outras nações conforme seus interesses, ou do ressentimento e temor gerados pela criação da Comissão da Verdade no governo de Dilma Rousseff, só podemos imaginar que a resposta a tal posicionamento das FFAA sejam os generosos vencimentos obtidos por militares que aceitaram fazer parte desta patacoada – alguns deles superando a casa dos 100 mil reais mensais, como nos casos dos generais Hamilton Mourão, Luiz Eduardo Ramos, Braga Netto e Augusto Heleno.

Ou seja, como de praxe, a questão recai sobre poder e dinheiro, sob a moldura de uma anacrônica subserviência aos EUA que ainda reflete o maniqueísmo do general e geopolítico brasileiro Golbery do Couto e Silva (1911-1987), o qual dividia o mundo entre “Ocidente cristão” e “Oriente ateu” no contexto da Guerra Fria.

Cumpre notar, porém, que havia realpolitik na diplomacia do regime militar brasileiro. Mesmo Couto e Silva, do alto de seu conservadorismo, era contrário à presença dos “irmãos” norte-americanos na Base de Alcântara, no Maranhão, ao passo que Ernesto Geisel se relacionou com o bloco comunista em nome do interesse nacional, conduzindo uma política externa conhecida como “pragmatismo ecumênico e responsável”.

O fato é que a versão de uma “necessária” luta contra o comunismo, que teria justificado as duas décadas de autoritarismo impostas pelas forças armadas brasileiras no país, tem ainda menos cabimento três décadas após a dissolução da União Soviética e 13 anos depois de um governo de esquerda na presidência do Brasil que sequer reforma agrária foi capaz de fazer.

Resta-nos esperar que os militares, ao menos, irão assegurar a realização do pleito eleitoral de 2022, bem como o respeito ao seu resultado, seja ele qual for, haja vista a criminosa agitação já iniciada pelo presidente e seus correligionários para tumultuar as próximas eleições.

Do contrário, estarão jogando a pá de cal sobre o que resta da imagem brasileira nas relações internacionais, minando, inclusive, a meta do próprio governo Bolsonaro de conquistar o ingresso do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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