Guilherme Ravache

Consultor digital. Jornalista com passagens pelas redações da Folha de S. Paulo, Revista Época e Editora Caras. Foi diretor de atendimento da Ideal H+K Strategies e gerente sênior de comunicação e marketing de relacionamento da Diageo.

Opinião

Por que a Globo pode ser a maior beneficiada pelo PL das Fake News

Na Austrália, onde existem leis semelhantes à proposta no Brasil, foram os grandes grupos de mídia os principais beneficiados

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Em vários países, governos têm atuado para que gigantes de tecnologia como Google, Facebook e Twitter paguem veículos de mídia para produzir jornalismo. A ideia, em princípio, é boa. Mas, como sempre, o diabo está nos detalhes.

Os veículos de imprensa, é claro, gostariam de receber mais recursos para apoiar o jornalismo. As big techs dizem não se opor a isso. Mas, se todos são a favor de destinar mais dinheiro para o jornalismo de qualidade, por que boa parte dos editores brasileiros, juntamente com Google, Facebook e Twitter, se uniram para combater a lei que obrigaria as big techs a fazer isso? 

A PL 2630, conhecida como Lei das Fake News, se tornou um projeto que perdeu o rumo e copia os piores aspectos de uma lei semelhante implementada em países como a Austrália.

O que começou como a Lei das Fake News já nem trata mais de fake news. O nome ficou porque captura o imaginário popular. Basicamente, a legislação agora é um cabo de guerra entre gigantes: Google, Facebook, Twitter x Globo. No centro do confronto, o uso de dados e o pagamento por notícias.

Limitar o uso de dados pode dar uma grande vantagem à Globo, que diferentemente do Google, do Facebook e do Twitter, produz seu próprio conteúdo, sem depender de vídeos e textos de terceiros. Receber dinheiro pela produção de notícias, também seria uma nova e importante fonte de receita para empresa.

Nos bastidores, a Globo tem atuado ativamente para influenciar os debates sobre a lei. E tem sido bem sucedida. Três pessoas em contato direto com o caso confirmam que a Globo tem influenciado as discussões. Segundo essas mesmas fontes, o artigo 38, que impõe às empresas de tecnologia o pagamento pelo uso de notícias, teria sido inserido a pedido da Globo aos 45 minutos do segundo tempo, na véspera da votação.

Procurada, a Globo não comentou as afirmações. 

Vale notar que a Globo não tem feito nada errado. É natural que as empresas atuem na defesa de seus interesses por meio do lobby político. Mas é importante entender as implicações de se aprovar a lei do jeito que está, e particularmente, seu impactos sobre empresas jornalísticas independentes e de pequeno e médio porte.

Uma das principais questões em jogo é que a Lei das Fake News sequer determina o que é notícia, e nem como seria feito o pagamento pelo uso dessas notícias. 

Os defensores do projeto dizem que é melhor “passar como está ou o momento se perderá”. Por momento, entendam-se as eleições. Ninguém vai votar contra uma lei de fake news às vésperas de uma disputa eleitoral. De fato, se não passar este ano, a Lei teria poucas chances de passar no futuro.

Isso explica o esforço do relator do projeto, o deputado Orlando Silva, em tentar impor regime de urgência para a votação da Lei, o que aceleraria o processo. Também explica por que as big techs têm colocado anúncios nos jornais.

Falta transparência ao processo

Na Austrália, onde existem leis semelhantes à proposta no Brasil, foram os grandes grupos de mídia os principais beneficiados. Até aqui, Google e Facebook firmaram em conjunto cerca de 30 acordos para remunerar empresas de notícias na Austrália. No entanto, muitas organizações de notícias ainda não conseguiram chegar a um acordo comercial com as plataformas, apesar do código estar valendo há quase um ano.

Os valores dos acordos não são públicos, e tampouco os critérios de escolha. Ninguém fora das organizações sabe por que um grupo de mídia é escolhido para receber a verba e quanto este veículo irá receber. As organizações jornalísticas também não precisam explicar onde o dinheiro é investido. 

“As riquezas não são distribuídas igualmente. A SBS, uma das duas maiores emissoras públicas da Austrália, recebeu dinheiro do Google, mas foi inexplicavelmente excluída pelo Facebook. A Croakey Health Media, um site sem fins lucrativos que fornece informações valiosas sobre questões médicas como covid e indígenas, não obteve nada de nenhuma das empresas”, aponta Bill Grueskin na Columbia Journalism Review.

Ainda segundo o CJR, a Nine Entertainment Co., que possui um grande canal de TV, várias estações de rádio, o Sydney Morning Herald e o The Age em Melbourne, deverá receber do Google e Facebook mais de R$ 250 milhões por ano. 

A News Corp Australia, de Rupert Murdoch, receberá pelo menos R$ 250 milhões como parte de um acordo maior que inclui publicidade e outros negócios, segundo pessoas com conhecimento dos termos. 

O governo australiano inclusive anunciou que fará uma avaliação para revisar a lei em vista de seu desempenho e identificar possíveis melhorias no código.

A lei australiana foi uma das principais inspirações para a lei brasileira. A proposta brasileira, contudo, é ainda pior que a da Austrália, que ao menos definiu que o governo entraria em ação caso não houvesse acordo entre as empresas de tecnologia e os veículos. Na Austrália, caso o veículo e a empresa de mídia não entrem em acordo, a negociação vai para arbitragem. Empresas de mídia e de tecnologia dizem quais valores acham “justo” pelo acordo e o governo escolhe a oferta que acha mais adequada. 

Investir em veículos de mídia obviamente pode ter benefícios. O dinheiro vindo da lei australiana ajudou o The Guardian a instalar uma nova redação na Austrália, o que é uma ótima notícia. Editores menores conseguiram seus próprios negócios. 

A Country Press Australia, um grupo comercial que representa cerca de 160 jornais regionais, obteve permissão do governo para negociar coletivamente com ambas as plataformas. Os contratos variam entre R$ 100 mil e R$ 200 mil, dependendo do tamanho e de quantas histórias eles gerarem.

Mas em última instância, cabe ao governo australiano a decisão de como “arbitrar” a divisão do dinheiro se não houver acordo. Além do impacto nas empresas de pequeno e médio porte de imprensa, que têm menos poder de barganha, pode não ser uma boa ideia deixar políticos decidirem como a imprensa receberá sua verba.

Basta observar o noticiário para imaginar que deixar nas mãos do governo e políticos decidir quais veículos vão receber mais ou menos recursos no Brasil pode não ser uma ideia muito boa. Além disso, os grupos de mídia com maior influência em Brasília ganham uma vantagem desproporcional frente aos demais, como aconteceu na Austrália.

Depois da Austrália, a França é o segundo país mais avançado em obrigar o Google e o Facebook a pagarem por notícias. Oito meses após receber uma multa de R$ 2,7 bilhões da União Europeia sob a acusação de não negociar em “boa fé” com os publishers, o Google anunciou semanas atrás um acordo com uma associação de veículos de imprensa. 

A associação representa 300 publishers, mas quem manda mesmo na organização são os gigantes da mídia. O acordo “define os princípios sob os quais o Google negociará acordos de licença individuais e termos de remuneração com os membros da Alliance”, disse o comunicado da associação.

Entre os primeiros acordos fechados na França foi com o Le Monde, que tem o bilionário tcheco Daniel Kretinsky, que fez fortuna com a mineração e gás, como um de seus donos. Google e a associação de veículos não divulgaram o valor do acordo.

Uma verdade inconveniente

A internet é um problema que começou há 25 anos para os veículos de imprensa. Os leitores parecem felizes em consumir conteúdo nas redes sociais e não se importam em consumir resumos de notícias em redes sociais, e agora até no TikTok se informam.

O próprio Facebook tem perdido espaço para o TikTok, deveríamos passar a taxar o TikTok também? Os veículos de notícia também perderem espaço para o streaming, deveríamos responsabilizar a Netflix e fazer com que ela também pague para ajudar jornais e revistas?

A dificuldade das empresas jornalísticas em encontrar pessoas dispostas a pagar por uma assinatura é um sintoma de que o problema vai além do Google e do Facebook. É um problema da postura frente ao consumidor e do modelo de negócio.

Infelizmente, há menos pessoas que buscam apenas notícias de qualidade do que os grandes grupos de notícias gostariam de acreditar. É cada vez mais evidente que poucas pessoas leem reportagens além da manchete. A maioria das pessoas não está disposta a pagar por todo o conteúdo de notícias quando querem apenas alguns pedaços de informação.

O problema não é pagar por notícias ou combater fake news ou aumentar a regulação das gigantes de tecnologia. As plataformas já disseram que estão abertas a discutir estes temas e entenderam que a pressão dos governos vai aumentar. 

Mas independentemente de você ser a favor ou contra pagar pelo jornalismo ou restringir o uso de dados, mudar qualquer lei a toque de caixa para aproveitar o período eleitoral não parece uma boa ideia.

O que a mídia de notícias precisa é de um modelo de compartilhamento de receita sem regulamentação governamental e sem as gigantes de mídia controlando e monopolizando a distribuição dos ganhos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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