Chico Paiva

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É formado em Relações Internacionais (PUC-SP) com Master em Business Economics (BEM/FGV-SP).

Opinião

Pode a esquerda progressista ignorar Felipe Neto?

Ao contrário do movimento que derrubou o PT e elegeu Bolsonaro, o youtuber não nega a política

O youtuber Felipe Neto em vídeo para o New York Times.
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Ontem o jornal americano New York Times publicou um vídeo-depoimento do youtuber brasileiro Felipe Neto em que explicava por que Trump não é o pior presidente no combate à pandemia do Coronavírus, ficando atrás de seu fã tupiniquim. 

O espaço é fruto de uma ascensão meteórica ao posto de uma das vozes mais potentes contra o presidente – em maio já havia sido o entrevistado do tradicional programa Roda Viva, da TV Cultura. 

Desde a eleição e 2018, o jovem de 32 é oposição à extrema direita de Bolsonaro, Witzel, Crivella e cia, denunciando as indignidades cometidas.

Os embates do carioca de família humilde nascido e criado no Buraco do Padre, zona norte da capital fluminense, têm extrapolado as arenas digitais.  

Em 2019, recebeu os primeiros holofotes ativistas quando o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, enviou uma equipe à Bienal do Livro com ordens para recolher um gibi que, entre tantas páginas, retratava um beijo entre dois homens. 

Em protesto à censura e homofobia descaradas, Felipe comprou 10 mil livros com a temática LGBTQ+ que foram gratuitamente distribuídos na porta do evento, acompanhados de uma etiqueta onde lia-se “Este livro é impróprio – para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. 

Outra figura extremista com quem colidiu foi o pastor Silas Malafaia. 

Primeiro, foi processado pelo líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo após dizer que ele “explora a fé das pessoas para enriquecer” – chegaram a um acordo e Felipe se desculpou. 

Depois, foi sua vez de processar Malafaia, quando, após o episódio da Bienal, o religioso chamou de “bandido e canalha” quem distribuiu revistas de temática LGBTQ+ na entrada da Bienal. 

Estes dois episódios já representam mais do que muitos autodeclarados ativistas progressistas fizeram em combate ao avanço do obscurantismo. 

Conforme Felipe foi ganhando notoriedade por seu posicionamento político, além da milícia virtual bolsonarista, passou também a receber fogo amigo da esquerda. 

O termo “reposicionamento de marca” é exaustivamente utilizado pelos que acreditam que ele apenas percebeu as vantagens financeiras de se juntar à luta. 

Não esquecem seu passado recheado de comentários homofóbicos e manifestações públicas contrárias ao governo do PT, tendo vocalizado seu apoio à derrubada da presidente Dilma – episódio que, em sua mea culpa no Roda Viva, chamou de “golpe”, para delírio de muitos. 

Na semana anterior, o jovem publicou um vídeo em que apelava a artistas e influenciadores que se posicionassem, clamando que “quem se cala perante o fascismo é fascista”. 

O vídeo rodou o Brasil, e chegou às páginas oficiais do PT, evidenciando ao mesmo tempo a potência de seu alcance e o ciúme da militância. 

Insatisfações pelo ibope dado a um “mero” youtuber se alastrou, de hashtags no twitter a artigos acadêmicos alertando para o perigo de entregarmos a liderança do movimento antifascista a alguém tão inculto.

Não recita Marx, nunca enfrentou a PM em manifestação de rua e jamais experimentou o chão frio de uma reitoria ocupada pelo movimento estudantil. 

A essas pessoas, enfatizo: vocês estão entendendo tudo errado. 

Nós sabemos o que o Felipe Neto é. Mais importante: ELE sabe o que o é. Um comunicador talentoso, que se coloca à disposição da tão falada, tão necessária e tão fracassada “frente ampla” no combate ao autoritarismo medieval de Bolsonaro. 

Alguns são taxativos em lamentar que o protagonismo político de Felipe Neto é fruto da falta de novas lideranças. O diagnóstico da falta de renovação, embora correto, não tem relação com o fenômeno das redes. O youtuber não é e nem almeja ser liderança política. 

Seu papel é outro: levar a mensagem do mínimo denominador comum de forma clara e mastigada a um alcance que só é possível hoje com um “influenciador” de peso, o equivalente ao “formador de opinião” no passado. Ainda com as maiores e melhores lideranças do mundo, Felipe Neto seria um aliado necessário. 

Ele não precisava disso. 

Podia simplesmente ficar quieto, não se posicionar, como o faz a maioria, preservando mercado publicitário em ambos os lados da trincheira. 

Ao invés disso, expõe a homofobia do Crivella, denuncia o charlatanismo de Malafaia, fala em rede nacional que a meritocracia é uma farsa liberal e que a desigualdade corrói o país e expõe ao mundo a incompetência e o desprezo pela vida de Bolsonaro ao lidar com a pandemia.

E mais: ao contrário do movimento que derrubou o PT e elegeu Bolsonaro, não nega a política. Não acha que os partidos são obsoletos, que no congresso nacional só tem bandido. Longe disso: reconhece que apenas a política nos afastará da crise, e é através dela, não apesar dela, que as mudanças acontecem. 

De quebra, dá uma aula de comunicação para os dinossauros que aprenderam a fazer política nas décadas de 80 e 90. 

A figura de Bolsonaro e sua eleição representam, antes de um projeto eleitoral, um fenômeno cultural. Ele é um expoente popular da figura que gosta de sertanejo universitário, UFC, programa do pânico com mulheres seminuas. É religioso e homofóbico – característica que, infelizmente, ainda não é suficientemente malvista no Brasil de verdade. 

Nesse Brasil, ninguém leu Marx. Não conhecem a história do golpe de 1964, ou porque a ditadura foi tão ruim. 

Ninguém nem sabe o que é fascismo. 

Bolsonaro é acessível, é descomplicado – e Felipe Neto também. E assim como Bolsonaro canaliza um sentimento do Brasil conservador, Felipe Neto é representante do jovem progressista. 

Com mais de 60 milhões de seguidores espalhados por suas redes, os posts do jovem carioca têm mais audiência que o Jornal Nacional. Seu séquito apenas no Youtube é maior do que a população do Canadá. 

Políticos de esquerda comumente publicam orgulhosas participações em debates universitários com algumas dezenas de pessoas, se gabam de menções em nota nas colunas de Mônica Bérgamo e Lauro Jardim. Que alcance isso tem? Que penetração no Brasil de verdade?

Neto alertou em uma de suas respostas: no mundo das redes políticas, Bolsonaro nada de braçada. Se antecipou a todo o establishment na estratégia de comunicação, que foi o pilar de sua campanha. 

Resgatemos Mano Brown: não conseguimos mais falar a língua do povo. Não ouvimos os recados. Nossa mensagem não chega. 

Hoje, Bolsonaro representa mais o trabalhador popular brasileiro do que a esquerda que tanto diz falar em nome dos mais pobres. 

É preciso romper a barreira linguística, e, no século XXI, a melhor ferramenta são as redes e seus influenciadores.

Talvez Felipe Neto defenda a privatização dos correios, tenha votado no Amoedo em 2018 ou apoie Huck em 2022. 

Mas, hoje, ele fala sobre desigualdade, homofobia e combate ao autoritarismo para 60 milhões de brasileiros, que escutam atentamente.

Se o objetivo comum é a “frente ampla” para impedir o avanço de Bolsonaro e trazer o enfrentamento para dentro da arena democrática, ele é nosso aliado. 

A importância das redes sociais na comunicação política é um fato concretizado. Os que não aceitam ficarão para trás, atropelados pela realidade. Que aproveitemos o megafone midiático que Felipe Neto ou qualquer outro influenciador esteja disposto a nos fornecer. Afinal, deu até no New York Times.

*Chico Paiva é formado em Relações Internacionais (PUC-SP) com Master em Business Economics (BEM/FGV-SP)

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