Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Passei no doutorado: o compromisso é abrir portas para que mais pessoas como eu possam entrar

‘Mal posso esperar para colocar o meu diploma de doutorado nas mãos da minha mãe’

Créditos: Glaucio Santos
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Em novembro do ano passado, fui aprovada no doutorado em Educação. No próximo mês, começam as aulas. Passei os últimos dias pensando no desafio que vai ser cursar disciplinas e produzir artigos em meio à pandemia, que tem levado, dentre outras coisas, muita gente ao adoecimento mental. A vida acadêmica exige muita dedicação. Não é fácil, sobretudo para nós, negros, uma vez que a universidade brasileira, desde sua fundação, não foi pensada para receber corpos pretos na condição de discentes e docentes.

Vivemos em um País que historicamente tem negado à população negra o direito de ser, saber e existir. Quando se trata das afro-brasileiras, as barreiras para a instrução formal são ainda maiores. Entre a população que não aprendeu a ler e a escrever, as mulheres pretas são maioria.

Em meio a esse cenário construído meticulosamente para impedir o exercício da cidadania plena por parte dos negros, consegui chegar à pós-graduação, o que até o momento foi alcançado por menos de 1/3 dos pretos e pardos. Obviamente, não cheguei até aqui em razão apenas dos meus esforços ou da vontade divina.

Filha de mãe semialfabetizada e de pai com o ensino fundamental completo, tive o privilégio de crescer em um lar cheio de livros. Meus pais apostaram todas as fichas na minha educação e na dos meus irmãos. Apesar da pouca escolaridade, a dona Nelita e o seu Nicolau entenderam que o acesso aos bancos escolares era o meio mais seguro de garantir a nós uma vida melhor do a que eles tiveram.

Mesmo nos momentos de maior precariedade material, em que ficávamos meses sem água e sem luz, tínhamos o que eu considerava verdadeiros “luxos”, como assinatura de jornais e revistas. Pensando nisso, lembro da escritora Carolina Maria de Jesus, que tinha consciência de que, apesar da dureza da vida, o fato de ela dominar a leitura e a escrita a distinguia positivamente dos demais moradores da antiga favela do Canindé, em São Paulo. Era assim que eu me sentia.

Além disso, na infância, eu já percebia que os estudos poderiam me salvar das dificuldades impostas pela condição de eu ser negra e pobre. Agarrei-me nessa convicção com todas as minhas forças. Fui atrás dos meus sonhos. Cada vez que me via diante de uma humilhação ou de uma violência racista, mirava nos lugares a que o conhecimento e um diploma poderiam me levar. Foi a minha salvação.

Como não poderia deixar de ser, ressalto também que sou filha das políticas públicas de expansão do ensino superior e das cotas, ações de combate à injustiça racial implementadas no Brasil a partir de 2003. Elas têm sido fundamentais para as recentes mudanças nas configurações de cor, raça e classe do meio acadêmico e, consequentemente, para a melhoria das condições de vida dos negros que conseguem acessar esses espaços, o que foi possível perceber nas últimas eleições.

Entre as vereadoras negras eleitas, várias delas puderam exercer o direito de frequentar cursos de graduação e pós-graduação também em função dessas medidas. Nos dizeres do professor José Jorge de Carvalho, as cotas têm contribuído de maneira pontual para “deselitizar radicalmente o ensino superior público e com isso demandar da universidade um retorno à sua função social, desvirtuada há muito pela sua homogeneidade de classe”.

Em um País racista como o Brasil, era de se esperar que as ações que visam a diminuir as desigualdades sociorraciais encontrassem forte oposição entre os grupos mais conservadores e as elites dominantes. O acesso dos que ocupam a parte mais baixa da pirâmide social às universidades continua sendo algo inadmissível para parte de uma sociedade que se acostumou a ver homens e mulheres negras em posição de subalternidade.

Prova disso são as medidas adotadas pelo atual governo, que consistem na deslegitimação das políticas de ação afirmativa, no ataque aos docentes comprometidos com a democratização do ensino superior, como também no corte de verbas e de bolsas de pesquisa. Trata-se de uma política imbuída em minar qualquer chance de ascensão por parte dos pretos e pobres.

Ressalto ainda que, se cheguei até aqui, devo muito ao engajamento do Movimento Negro, ator principal na luta pelo direito à escolarização da comunidade negra. As denúncias e o trabalho dos ativistas da causa antirracista foram fundamentais para a aprovação de um conjunto de leis, programas e projetos, que têm garantido a pessoas como eu acessar lugares inimagináveis para as gerações anteriores.

Nesse processo, é importante ressaltar o papel de mulheres negras como Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Azoilda Loretto da Trindade, Luiza Bairros, Nilma Lino Gomes e tantas outras que participaram ativamente na formulação e implementação dessas medidas, essenciais para o ingresso e permanência da população negra no espaço universitário.

Ingresso no doutorado num momento em que tudo é horror e destruição. Momento no qual as políticas públicas que têm garantido a diversidade e a inclusão racial no ambiente acadêmico estão seriamente ameaçadas. Ciente das dificuldade que se apresentarão pelo caminho, não perco de vista o compromisso de abrir portas para que pessoas como eu possam entrar. A vida acadêmica não faz sentido se não houver compromisso com a transformação social.

Conforme escrevi no início deste texto, atualmente, menos de um terço dos pretos e pardos estão matriculados em cursos de pós-graduação, o que se dá em função das barreiras criadas propositalmente pelo racismo estrutural.

Recentemente, ao me visitar, minha mãe lembrou do tempo em que trabalhou como empregada doméstica e disse: “Quando trabalhei na casa da Tereza, em Santa Luzia (MG), pedi para sair. Cansei de trabalhar feito uma escrava. No dia que eu vim embora, ela falou: ‘Pois é! Quero ver onde a Nelita vai comer castanhas agora!’. Veja como é a vida, Luana… Agora, além de comer castanhas na hora que eu quero, vou ter uma filha doutora!”.

Mal posso esperar para colocar o meu diploma de doutorado nas mãos da minha mãe.

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