Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Para os famintos, o teto

Os gastos para que Bolsonaro e Guedes tentem comprar votos matando a fome não são o problema

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro (Foto Marcelo Camargo Agência Brasil)
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Como já escrevi, existe uma qualidade admirável em Jair Bolsonaro: a transparência. Nunca tivemos um deputado, um candidato à presidência e um presidente tão claro e cristalino a respeito do que pensa, dos valores que defende, e das razões pelas quais faz ou deixa de fazer alguma coisa.

É exatamente por essa razão que não dá para engolir declarações como a do governador Eduardo Leite, que alegou ter sido impossível imaginar em 2018 o que viria pela frente se Jair Bolsonaro fosse eleito. Tudo mentira. Puro cinismo. Ainda mais vindo de um político profissional que sabia, talvez mais do que a média geral, de que matéria moral era constituída o deputado e candidato que defendeu tortura, idolatrou torturador, fez apologia ao estupro, ameaçou agredir fisicamente uma colega deputada e destilou homofobia, racismo e misoginia. Estava tudo ali. Sempre. Bolsonaro nunca se escondeu. Ou seja, alegar imprevisibilidades, nesse caso, é fazer a escolha pela indignidade.

Estamos diante de mais uma demonstração cabal do que afirmo. O presidente sequer faz questão de esconder que está pouco se lixando para o aumento da miséria e da fome. O crime que está cometendo contra o programa Bolsa Família, chamado Auxílio Brasil, tem data para terminar, vejam vocês: dezembro de 2022. Coincidentemente, é mais ou menos a data em que o ocupante da cadeira presidencial espera já estar reeleito. Bolsonaro não quer uma política de Estado para combater a fome, quer comprar votos pelo estômago. Só que votos são muito mais complexos do que julga a vã escrotidão dessa gente. E teremos um laboratório a céu aberto mostrando que a popularidade do presidente não crescerá como eles esperam. Cobrem-me.

O mesmo deve ser dito de Paulo Guedes, vendido quase em uníssono pela grande imprensa como um competente técnico desprovido de ideologia. Pura balela. Quem aceita fazer parte de um governo como esse, diferente de Jair Bolsonaro não é.

Quem ainda acreditava em algo diferente disso, teve mais uma demonstração eloquente dessa falácia. Paulo Guedes e sua cara-metade, Jair Bolsonaro, criaram nesta semana uma espécie de uma crise bastante curiosa, que serviu magistralmente para dar ainda mais transparência aos negócios e caráteres públicos desta nossa República: a preocupação com o teto de gastos.

Seria cômico, não fosse trágico. Mas, ao menos, é didático. O teto de gastos há tempos é uma ficção. Não está furado, já está arregaçado. O problema não está no provisionamento dos gastos para que Jair Bolsonaro e Paulo Guedes tentem comprar votos matando a fome. Ora, há muito o governo despeja bilhões do orçamento público para o Partido Progressista, o Partido Liberal, dentre outros, para manter alguma estabilidade no Parlamento, evitar um impeachment e conseguir avançar com sua agenda de desmonte do Estado.

Toda essa polêmica e falaciosa preocupação com a saúde fiscal tem uma única razão: na filosofia iliberal e demofóbica de Paulo Guedes, Jair Bolsonaro, do mercado financeiro e de boa parte do empresariado brasileiro, dar dinheiro para pobre é o pior dos pecados. Os secretários de Paulo Guedes não pediram demissão porque o chefe estava cogitando fazer uma farrinha fiscal. Imagina. O chefe já vem fazendo isso faz tempo. Saíram simplesmente porque defendem que o dinheiro público, que eles pensam (e, de alguma maneira, estão certos) ser de propriedade das castas sociais de que fazem parte e representam, não pode ser gasto auxiliando pobres, famintos e miseráveis. Não há questão técnica nenhum. Esta é uma história completamente ideológica.

Para a mentalidade bolsonarista e guediana, que representa um contingente expressivo de brasileiros (principalmente os do topo da pirâmide) o Brasil é constituído por uma massa de pobres escorados no Estado para receber grana e gastar no bar, como disse o governador bolsonarista Romeu Zema um dia desses. Isso vem de longe. O Bolsa Família sempre foi criticado pela mesma razão, inclusive sob o argumento de que mulheres pobres engravidariam mais para receber a grande fortuna desse benefício. Tudo uma grande falácia empírica, mas que representa cristalinamente a mentalidade imoral e desumana dessa gente.

Não é à toa que vira e mexe alguns personagens da cabecinha preconceituosa e classista de Paulo Guedes acabam escapulindo por sua boca. A empregada indo para a Disney. O filho do porteiro pulando o muro da universidade. Quando essa gente olha e pensa nos pobres, o que veem é tão e somente uma imagem refletida deles mesmos. Nem precisamos recorrer a Raymundo Faoro para nos certificarmos disso. Basta conferir a polêmica da semana ou olhar para o presidente que elegemos.

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