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Os perigos do discurso desenvolvimentista na Amazônia

Estimulado pelo governo federal, discurso que contribui para desigualdade social na região e ataques à floresta ressoam na região

(Foto: Ascom/Ibama)
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Na atuação como Enfermeira da Secretaria Estadual de Saúde, em diversos lugares do interior do estado do Pará, constatei a importância das populações tradicionais na preservação da floresta e de seu uso sustentável na produção de alimentos orgânicos, como o Cupuaçu, a Mandioca, utilizada na produção da farinha “baguda”, da goma, do Tucupi, além da folha da Maniva, a qual é cozida por sete dias para retirada total do ácido cianídrico (composto químico altamente tóxico e letal), por ser o ingrediente principal para o preparo da Maniçoba, prato típico do povo paraense, consumido em maior escala durante as comemorações do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, tradicional festa católica do Estado do Pará.

Outro elemento fundamental na culinária amazônica é a folha do Jambú, componente do Tacacá e da cachaça de Jambú, cujo sabor forte, exótico e, dizem, afrodisíaco, provoca leve dormência nos lábios, o famoso “jambú treme”, este utilizado também nas indústrias: farmacêutica, na de higiene pessoal, de cosméticos e até mesmo em produtos eróticos. Vale ressaltar, ainda, o açaí que é exportado para todo o Brasil e para o mundo.

Falar desses aspectos vai além de descrever uma culinária típica do nosso povo. É falar de cultura e sustentabilidade, pois a biodiversidade presente na floresta Amazônica garante tanto o abastecimento dos pratos com iguarias dos nortistas como movimenta a economia da região.

São inquestionáveis a importância e a potencialidade da região para a população local, que luta contra sua devastação. Infelizmente, só se desencadeou uma grande discussão de âmbito nacional e internacional sobre a temporada das queimadas e a necessidade de preservação da floresta, quando o “dia virou noite em São Paulo, que ocorreu como consequência de dias seguidos de queimadas na região amazônica.

Foto aérea de Boca do Acre, no interior do Amazonas, em 24 de agosto. Foto: Lula Sampaio/AFP

O episódio também ficou conhecido como “O dia do fogo”, que culminou com a fumaça cobrindo a cidade de São Paulo pela ação dos ventos em convergência com a chegada de uma frente fria.

Alguns diziam ser prenúncio do apocalipse, mas na verdade era o cenário de uma tragédia tramada por incendiários e criminosamente autorizada por uma política de entreguismo de nossa floresta para os produtores rurais, para a pecuária predatória e para os gigantes da mineração.

Assim, pois com esse acontecimento, os brasileiros de outras regiões perceberam os riscos a despeito da devastação da floresta Amazônica. 

Amazônia como lugar a ser ocupado e desenvolvido: grande engano interessado

A Amazônia é a região que abriga a maior floresta do mundo com uma grande riqueza em termos de biodiversidade. No entanto, de forma equivocada, a imagem da Amazônia como um vazio demográfico com “pouca gente para muita terra”, é a base do discurso que legitima os planos messiânicos pensados fora da região, que até hoje são responsáveis por instalar a barbárie nesta localidade, sob falsas alegações de busca pelo progresso e pelo desenvolvimento.

Discurso baseado em senso comum desenvolvimentista é gerador de desigualdades na região e desastres ambientais. Na foto, Jair Bolsonaro (PR).

A este propósito, essa imagem criou ao longo do tempo uma dinâmica de subalternidade da região, na qual as alternativas de uso da floresta e do espaço amazônico, pensadas e aprimoradas ao longo de gerações dos povos locais, com muita tecnologia social e conhecimento envolvido, passam a não ter valor perto de alternativas do grande capital.

Os grandes projetos que temos visto na região, há décadas, são responsáveis por gerar uma grande concentração de riquezas, devastar a floresta e promover empregos muitas vezes em condições precárias, incluindo condições análogas à escravidão.    

Essa lógica de desenvolvimento provocou historicamente a desestruturação da sociedade local, tanto em uso das populações da região como mão de obra barata para o acúmulo de riquezas de poucos, assim como também em processos de imigração que resultaram em conflitos por terra ou desemprego.

Tudo quanto foi dito, têm respaldo na visita do presidente da república Jair Bolsonaro ao Japão, onde fez duas declarações sobre a Amazônia que demonstram claramente a que veio. Na primeira afirmou que o interesse na Amazônia não é no índio e nem na porra da árvore, é no minério; em seguida, que a floresta interessa ao mundo todo e está aberta para exploração.

O mesmo sucedeu recentemente em um fórum de investidores na Arábia Saudita, onde o presidente declarou que as queimadas na Amazônia foram potencializadas por ele porque não se identificou com as políticas anteriores adotadas no tocante à Amazônia. Tais declarações denotam que o governo além de estar alinhado com um modelo de devastação da floresta e de suas populações tradicionais, também demonstra total irresponsabilidade para com o povo amazônida e brasileiro.

 

Convém perceber, ainda, que os tempos atuais apontam para uma diferença substancial com o passado, em que as elites locais eram as protagonistas na exploração da região. De repente, a capacidade de destruição acelerada da floresta se faz com novos contornos, principalmente com o aval de um governo federal que incentiva a exploração e o desmatamento para produção de gado, madeira, grãos e minério. 

Da barbárie à alternativa

A Amazônia brasileira

É fora de dúvida que assistimos neste século ao avanço da fronteira agrícola na Amazônia e a composição de uma poderosa coalizão de interesses predatórios do grande capital na região, que são responsáveis por desterritorializar indígenas, quilombolas, camponeses, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, seringueiros, ribeirinhos e todas as populações locais de terras tradicionalmente ocupadas,

Se pensar que estas populações tradicionais historicamente preservam a floresta e produzem alimentos para o povo amazônico estão perdendo seus territórios para o agronegócio, mesmo que o uso tradicional das terras esteja ancorado em práticas muito mais sustentáveis, é no mínimo assustador. 

Porém, nesse caso, é evidente que as práticas do capital ainda se justificam por uma atuação do Estado brasileiro em nível federal e estadual que opta por uma estratégia de desenvolvimento equivocada para produzir commodities como minério, madeira, gado e grãos. 

Por outro lado, ainda há esperanças.

Essa esperança mora junto aos movimentos sociais do campo e da floresta na Amazônia que comprovam com experiências produtivas que a floresta em pé é capaz de gerar riqueza e que a concentração fundiária precisa ser combatida, na medida em que os usos das populações tradicionais são capazes de absorver mão de obra, produzir alimentos de qualidade e contribuir na construção da soberania alimentar,

Mora com a crença na preservação da floresta e sua biodiversidade, manejando os recursos da região de forma sustentável e mantendo suas antigas tradições no uso das ervas, na apreciação dos sabores amazônicos.

Nessa esperança, seguem resistindo os povos amazônidos.

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