Vilma Reis

Socióloga, ativista e ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia

Opinião

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Operações eleitorais

Em um país secularmente brutalizado pelo racismo, até uma ocorrência de trânsito se torna uma operação de terror contra os negros

Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
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Uma infração de trânsito deveria ser tratada, para todos os brasileiros, como uma ocorrência de ordem administrativa. Ou seja, deveria ser aplicada uma multa e, a partir disso, o cidadão poderia pagá-la ou entrar com um recurso simples. Mas, em um país secularmente brutalizado pelo racismo, com uma população majoritariamente negra e empobrecida, nem uma infração de trânsito é algo simples – ou equânime.

Para os homens negros, em particular, um delito de trânsito, que termina em um contato com um agente de segurança pública ou de trânsito, pode lhe custar a vida. Foi o caso de Genivaldo de Jesus, em seu trágico encontro com a guarnição da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que nem sequer é militarizada e deveria, portanto, ater-se às suas atribuições administrativas.

O fato de um homem negro ter sido assassinado numa câmara de gás improvisada, publicamente, na frente de membros de sua família, deve ser tratado como crime hediondo. Trata-se de um ato inaceitável, que traz sérias implicações e afeta a coletividade negra e o conjunto da sociedade brasileira.

Esse assassinato filmado e que, por isso mesmo – ao contrário de tantos outros – não pode ser negado, evidencia muitas questões relacionadas à brutalidade racial que faz parte do cotidiano das instituições de segurança pública e das polícias rodoviárias. O que aconteceu com Genivaldo espelha a forma como o Estado, por meio de suas instituições, trata as populações negras, indígenas, ciganas, LGBTQIA+ e outras.

Tais populações são tratadas como inimigas. Seus corpos são, cotidianamente, desumanizados e criminalizados. Não é por outra razão que chegamos ao absurdo número de 60 mil assassinatos, todos os anos, de jovens negros, periféricos e empobrecidos no País. É esse mesmo cenário que explica os 75 mil desaparecidos – muitos deles, certamente, mortos – registrados desde que está vigente a redemocratização. É este um pleno Estado Democrático de Direito?

Nós, defensores e defensoras de direitos humanos, lutamos pela desmilitarização das polícias e destacamos nossas preocupações com a militarização de uma instituição como a PRF. Como é possível que uma questão de trânsito seja transformada em uma operação de terror, presenciada e filmada por pessoas que imploravam para que os agentes públicos pusessem fim àquelas atrocidades?

Foi contra descalabros como esse que a Coalizão Negra por Direitos entrou, no último dia 12 de maio, com uma Arguição de Descumprimento de Preceito (ADPF) junto ao Superior Tribunal Federal (STF). Denunciamos, ao lado dos coletivos de mães das vítimas do terror de Estado, os crimes de morte que assolam e assombram o País, destacando o agravamento dessa situação com o governo Bolsonaro.

Acompanharemos, com grande interesse, os desdobramentos do acolhimento da denúncia pela ministra Rosa Weber, e também as investigações sobre o assassinato de Genivaldo de Jesus.

É fundamental, além disso, que o Ministério Público nos estados cumpra seu papel de controle externo da atividade policial e dê respostas às famílias vitimadas. Cabe dizer ainda que, hoje, a violência policial-militarizada ultrapassa as fronteiras das polícias. Essa violência está na PRF assim como está nas escolas, mas, simplesmente, não é enfrentada.

As Mães das Vítimas, na Sessão Especial na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, nesse mesmo 12 de maio, disseram: “A polícia mata nossos filhos e o Ministério Público, quando arquiva quase todos os processos, os enterra”. São palavras fortes e dilacerantes, sobretudo se pensarmos que essas mães, muitas vezes, são responsáveis, em meio à dor, por investigar os assassinatos dos próprios filhos.

Por tudo isso, nós, dos campos das esquerdas e dos direitos humanos, precisamos colocar sobre as mesas de decisão nossos projetos de Segurança Pública com Direitos Humanos. Esses projetos preveem agentes bem formados e bem pagos, aptos a cumprir o que está na Constituição de 1988.

Precisamos ainda de orçamentos para o investimento direto em políticas para as juventudes negras, indígenas e periféricas. Quem menos tem, e vive em bairros abandonados, precisa de programas voltados ao primeiro emprego e de políticas específicas – tanto as culturais quanto as de drogas.

Só com políticas corajosas poderemos enfrentar as mentalidades institucionais que militarizam, armam e governam sob a lógica do medo hoje dominante no País. Entendemos que a operação que matou Genivaldo de Jesus, assim como as operações de Vila Cruzeiro, são, na verdade, operações eleitorais. E é contra elas, e pelo direito à vida, que nos levantamos e acionamos o STF. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Operações eleitorais “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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