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Opinião

O racismo religioso tem encontrado amplo respaldo no conservadorismo

Marcos Rezende escreve sobre o caso da mãe que perdeu a guarda da filha após participar de um ritual de candomblé

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Por Marcos Rezende*

Este texto é motivado pela matéria com o seguinte título: “Após denúncia de avó evangélica, mãe perde guarda da filha por participar de ritual de candomblé“. A matéria informa que, no curso dos rituais religiosos de iniciação da garota de 12 anos, em Araçatuba/SP, familiares evangélicos denunciaram ao Conselho Tutelar que a jovem estaria sofrendo maus-tratos e abuso sexual, motivando ação judicial. Mesmo com o relato da garota de que não tinha sofrido qualquer tipo de violência, mas que estava, sim, passando por um ritual de iniciação religiosa, a guarda foi retirada da mãe.

O racismo religioso no Brasil tem encontrado amplo respaldo no conservadorismo, que avança no mundo de mãos dadas com o capital (racista em sua essência), e em setores religiosos neopentecostais. O simples fato de os Povos de Terreiro terem a sua cultura e fé alicerçadas em matrizes predominantemente africanas faz com que o racismo que estrutura o pensamento hegemônico do capital e das religiões que a ele se abraçam, inclusive na perspectiva do monopólio dos meios de comunicação, subalternize seus adeptos e o submetam aos mais diversos tipos de violência com a condescendência do Estado, quando não ao seu próprio mando.

É forçoso observar que o caso narrado na matéria permeia a história dos Povos de Terreiro no Brasil. No Rio de Janeiro, no ano de 2007, a jornalista Rosiane Rodrigues teve a guarda do filho de 8 anos invertida, em um processo que tinha como objeto tão somente a regulamentação de visita do genitor. Rosiane, que é Yalorixá, também perdeu a guarda do seu filho para o racismo religioso e ainda foi constrangida à prisão por não obedecer à ordem judicial manifestamente ilegal de entregá-lo ao oficial de justiça.

Essas violências contra religiosos de Terreiro passaram a encontrar respaldo ainda maior nos períodos pós-golpe de 2016, segundo dados oficias do próprio governo a partir do Disque 100.

As alianças espúrias praticadas na constância dos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro têm fortalecido cada vez mais o campo conservador e mitigado a laicidade do Estado a partir de pronunciamentos e ações políticas que evidenciam o racismo como elemento norteador do atual (des) governo brasileiro. De mãos dadas com setores conservadores e antidemocráticos do Poder Judiciário, religiosos neopentecostais têm seus crimes de racismo e as violências deles decorrentes encobertos pelo nebuloso véu da “justiça”.

Situações como a narrada na matéria e a vivenciada pela jornalista Rosiane Rodrigues demonstram como o racismo é tratado pelo Poder Judiciário brasileiro, que transforma criminosos em vítimas e que permite que o Poder Público sirva de caixa de ressonância para o conservadorismo, seja por meio de agentes policiais que servem de linha auxiliar na prática das violências raciais, pasmem, sob as ordens autorizativas de magistrados, seja por meio da postura de um Conselheiro Tutelar que relativiza os direitos da criança e do adolescente em nome da implementação de um projeto de Estado Confessional, colocando sob suspeita o crescente interesse das igrejas neopentecostais pelas eleições dos Conselhos Tutelares.

Retirar a guarda de uma mãe com motivação racista remonta a estratégia utilizada pelo colonizador no processo de escravização dos negros africanos. O desmonte dos vínculos familiares e o distanciamento de seus membros foram justamente a prática utilizada pela casa grande para evitar que negros estivessem unidos e afinados em nome de seus direitos e de uma justiça em que se tenha a presença do princípio da igualdade como elemento realmente central. Se soubesse o magistrado que ordenou a perda da guarda que Yemanjá é mãe que ultrapassa qualquer barreira do distanciamento físico, não atentava contra quem o tem regendo a vida.

Vale, por fim, registrar que os fatos trazidos na matéria violam a liberdade de crença e quebra com a proteção aos locais de culto e suas liturgias, ambos previstos na Constituição e reafirmados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Isto reafirma o quanto a Justiça brasileira é pautada no racismo e o quanto os tribunais brasileiros funcionam como tribunais de exceção para a população negra.

*Marcos Rezende é candomblecista, mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela Universidade Federal da Bahia, atuando nas temáticas de raça, direitos humanos, patrimônio, religiões afro-brasileiras e racismo religioso. Foi Conselheiro Nacional de Segurança Pública, de Direitos Humanos e de Promoção da Igualdade Racial. Atualmente, é bolsista do Centro Cultural África Caribe – Harlem-NY, além de coordenador Para Assuntos Internacionais do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e membro do Conselho Editorial da Mídia 4P.

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