Paula Johns

Diretora Geral da ACT Promoção da Saúde

Opinião

O que o ‘Nestlé leaks’ tem a nos dizer

Um documento interno da gigante alimentícia reconhece que mais de 60% dos seus produtos não são saudáveis. E pior: nunca o serão

(Foto: Reprodução)
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Nas últimas semanas veio à tona um vazamento de informação interna da Nestlé, reconhecendo que mais de 60% dos seus produtos não são saudáveis. E pior: nunca o serão, por mais que a empresa os renove.

Os documentos mostram que somente 37% dos alimentos e bebidas da empresa alcançam uma classificação acima de 3,5, entre ‘cinco estrelas’. Em outras palavras, significa que, do portfólio total da companhia, mais de 70% não alcançam essa barreira. 

O caso é semelhante ao dos documentos internos das empresas de tabaco, que vieram a público na década de 1990, depois de processos nos Estados Unidos. Neles, ficou muito claro o quanto esta indústria mentiu sobre os riscos de seus produtos, sobre a dependência e a manipulação de nicotina, o fumo passivo e o marketing. Com o conhecimento desses ‘segredos’, foi possível traçar diretrizes de controle do tabagismo de forma global, por meio do primeiro tratado vinculante de saúde pública, da Organização Mundial da Saúde.

Ao ler a história da Nestlé, foi impossível não fazer essa relação, já que as empresas de alimentação – e também de álcool e combustíveis fósseis, entre outras – têm um modus operandi muito semelhante ao que sempre foi feito no tabaco. Funciona como uma espécie de “manual de ação” desenvolvido pelas empresas tabaqueiras, replicado por tantas outras, que inclui lançar dúvida sobre o conhecimento científico; financiar pesquisas para produzir os resultados desejados; entre outras ações. 

A professora emérita de ciências nutricionais na Universidade de Nova York Marion Nestle — cujo sobrenome não tem qualquer relação com a empresa de alimentos — explica de forma muito prática essas questões. O trabalho das empresas de alimentos e de tabaco, segundo ela, é gerar lucro para seus investidores, da forma mais rápida e crescente possível. 

Ela prossegue: “Elas vendem produtos que atingem um espectro enorme da população e que as pessoas querem comprar, e isso é o que se chama junk food. A Nestlé é uma empresa muito esperta, ao menos pelo que vi em encontros com pessoas do departamento de ciências. Mas eles têm um problema real, que é tentar reduzir o sal e o açúcar sem mudar o sabor de seus produtos, e isso é muito difícil de fazer.”

Há indústrias cujos produtos sempre vão causar externalidades negativas à sociedade. E se o problema delas é continuar a dar lucro, o nosso, como representantes da sociedade civil, é cobrar do Estado medidas de regulação. Afinal, a conta que os cofres públicos têm com custos à saúde, relacionados a doenças que poderiam ser evitadas caso o consumo caísse, é aviltante. No caso do tabaco, é uma conta que, aqui no Brasil, chega a R$ 92 bilhões anuais, com tratamentos de doenças e perdas indiretas referentes à redução da produtividade dos profissionais por morte ou incapacitação. Enquanto isso, a arrecadação de impostos com a venda de cigarros é de R$ 12 bilhões. 

Os números da obesidade são igualmente assustadores. A última Pesquisa Nacional de Saúde, de 2019, apontou que o percentual de adultos obesos passou, em 17 anos, de 12,2% para 26,8%. No mesmo período, o excesso de peso já atinge 61,7% dos adultos. Temos aproximadamente 168 mil mortes, por ano, atribuíveis ao excesso de peso e obesidade. E é claro que isso impacta no custo. Os recursos arrecadados com tais impostos precisam ser vinculados à saúde, especialmente para a prevenção aos fatores de risco das doenças crônicas não transmissíveis, como cânceres, doenças cardiovasculares e respiratórias. 

Em síntese, o “Nestle Leaks” é uma oportunidade para desconstruirmos o paradigma do nutricionismo, termo que propõe um olhar crítico sobre o reducionismo nutricional nos dias atuais, e suas implicações para saúde das pessoas e do planeta. É um passo para corrigir falhas de mercado cujo preço é pago por todos nós. 

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