Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

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O que já era ruim, ficou pior

Com discurso apocalíptico, governo de São Paulo maquia resultados de avaliação de aprendizagem e foge da responsabilidade por apagão na educação

Rossieli Soares, ex-secretário estadual de Educação em São Paulo (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil) Créditos: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
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O que “já era ruim, ficou pior”. Foi assim que o secretário da educação do estado de São Paulo, Rossieli Soares da Silva, resumiu a situação do ensino paulista a pretexto da divulgação dos resultados do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) para o ano de 2021. No comunicado à imprensa (01 mar. 2011), a Secretaria da Educação (Seduc-SP) afirmou que “os dados da avaliação confirmam as perdas irreparáveis causadas pela pandemia e fechamento das escolas”.

O tom bombástico – “perdas irreparáveis” – e a afirmação categórica – “causadas pela pandemia e fechamento das escolas” – insinuam as verdadeiras intenções governamentais: livrar-se da responsabilidade pelo problema da queda dos indicadores. Foi a pandemia! Foi o fechamento das escolas! Foram os sindicatos! A imprensa! Os pseudopesquisadores! Os alarmistas da saúde pública! A esquerda! Vocês são os culpados pelas perdas irreparáveis na aprendizagem das nossas crianças! Nós avisamos! As madames do movimento Escolas Abertas avisaram!

Na coletiva de divulgação dos resultados da avaliação, Rossieli opôs pela enésima vez a suspensão emergencial das aulas presenciais durante a pandemia à defesa demagógica do ensino presencial para criancinhas e adolescentes desvalidos. “Não pode ser o carnaval a prioridade do nosso país, tem de ser escola presencial”, disse o secretário. Estaria ele sugerindo que, nas escolas, mais se festeja do que se estuda ou trabalha? A cada afago paternalista de Rossieli aos humildes, sobrevém um ataque elitista ou moralista a escolas, estudantes e profissionais da educação.

O secretário chegou ao cúmulo de especular que os professores é que não teriam se esforçado o suficiente para ensinar os estudantes, pois “o Saresp pela primeira vez não foi considerado para pagamento de bônus e as escolas sabiam disso”. Apesar de ponderar que não sabe “se isso influenciou” no mau desempenho no Saresp, Rossieli não economizou na leviandade. A ineficácia da política de bonificação por desempenho na rede paulista é conhecida: estudos internos da Seduc-SP apontam os problemas do modelo desde 2011. Além disso, em 2021, o bônus foi convertido pelo governo paulista em abono salarial pago aos professores. A ofensa ao professorado também faz parte da estratégia diversionista de Rossieli, que sabe que o bônus não tem nada a ver com o assunto, mas joga para a plateia na esperança de que as pessoas esqueçam de conferir os dados para checar o que ele diz.

Maquiando indicadores

Embora os indicadores de aprendizagem não contenham toda a informação sobre a qualidade geral da educação pública, são esses os números que os secretários de educação e seus parceiros empresariais exibem para celebrar o sucesso das políticas educacionais implementadas nas redes estaduais e municipais. É nesse mesmo terreno, portanto, que vamos debater os resultados do último Saresp.

Em termos objetivos, o Saresp 2021 aponta que os estudantes do 5º e do 9º ano do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio da rede estadual não apresentam as proficiências esperadas para o seu ano escolar (o que não é propriamente uma novidade na rede estadual). No último ano do Ensino Médio, por exemplo, a avaliação mais recente mostra que as proficiências em Língua Portuguesa e Matemática são equivalentes, respectivamente, ao que seria esperado para estudantes do 8º e do 7º ano do Ensino Fundamental. O mesmo tipo de defasagem foi observado para os estudantes do 5º e do 9º ano que também participaram da avaliação.

A queda nos indicadores entre 2020 e 2021 foi interpretada pelo governo de São Paulo como efeito único e inequívoco da pandemia e do fechamento das escolas. A fim de induzir a população a acreditar nessa esparrela, a Seduc-SP divulgou aos jornalistas uma série de gráficos que focalizam e destacam em laranja uma queda abrupta dos índices no biênio da pandemia (Figura 1).

Figura 1. Gráficos com a série histórica do Saresp (2010-2021) apresentados à imprensa pela Seduc-SP.

A ênfase na queda abrupta é uma estratégia para disfarçar a tendência de queda nos indicadores que já existia antes da pandemia. Para constatar que o tombo nos indicadores antecede o ano de 2020, vamos comparar as proficiências de todos os estudantes na mesma área do conhecimento em um gráfico com escala adequada.

O resultado da operação demaquilante é que, na Figura 2, a violenta queda nos índices destacada em laranja pela Seduc-SP já não parece assim tão íngreme. O que havia, na verdade, era uma tendência suave de subida dos índices até o ano de 2019, e que se inverteu precisamente a partir da chegada de João Doria ao governo de São Paulo e de Rossieli Soares à Seduc-SP.

As regiões em amarelo destacam os indicadores durante o governo de João Doria, com Rossieli Soares da Silva à frente da Seduc-SP.

Figura 2. Proficiências e defasagem em Língua Portuguesa e Matemática (Saresp, 2010-2021). Fonte: Elaboração própria, com base nos sumários executivos (2010-2021) e na escala de proficiência do Saresp.

Podemos ir além na descrição dos dados de proficiência e estimar a defasagem dos estudantes em Língua Portuguesa e Matemática seguindo a mesma metodologia do governo de São Paulo. Curiosamente, a divulgação do governo mostrou apenas a defasagem para o período entre 2020 e 2021, deixando de fora o ano anterior. À exceção da defasagem em Matemática dos estudantes de 5º e 9º ano do Ensino Fundamental, que acompanharam a tendência de queda das gestões anteriores, todos os demais índices se mantiveram estacionados ou aumentaram depois de 2019. É isso o que o mise-en-scène do secretário da educação tenta esconder do público.

Quando o governo paulista divulgou os resultados do Saresp 2018, herdado da gestão anterior, o recém-empossado Rossieli Soares comentou que “entre os anos de 2005 e 2017, a gente vê que São Paulo tem tido um crescimento mais lento. […] nós precisamos acelerar o processo de melhoria dos nossos resultados”. Naquele início de gestão, o arrogante secretário e ex-ministro da educação de Michel Temer alfinetava os seus antecessores e apresentava como desafios para a sua gestão “garantir os 200 dias letivos […] melhorar os nossos materiais, adequá-los as nossas necessidades, e conectar mais com os alunos, especialmente o que chega ali na segunda etapa do fundamental e no médio” (12 fev. 2019).

O balde de água fria veio um ano depois, quando o desempenho dos estudantes do Ensino Médio recuou pela primeira vez em seis anos. Desta vez, a exuberância midiática de Doria/Rossieli botou as barbas de molho. Sobre os resultados do Saresp 2019, uma tímida nota oficial (31 jan. 2020) limitou-se a salientar a melhora pontual dos indicadores de Matemática do 5º e do 9º ano e a apresentar uma série de propostas para “enfrentar o desafio de melhorar a qualidade do Ensino Médio e torná-lo mais (sic) atrativa”: o programa Inova Educação, parceria da Seduc-SP com o Instituto Ayrton Senna com aulas de “projeto de vida” das escolas; o Novotec, visando ofertar cursos profissionalizantes de baixa complexidade; a expansão do Programa de Ensino Integral (PEI), política educacional discriminatória que eleva indicadores excluindo estudantes vulneráveis da escola de jornada ampliada; e a elaboração do novo currículo do Ensino Médio, com conteúdo reduzido e foco naquilo que interessa ao Saresp: Língua Portuguesa e Matemática.

Em 2021 (o Saresp não foi realizado em 2020), diante da inevitável queda nos indicadores, o governo paulista apostou na estratégia de maximizar o escândalo para esconder o próprio fracasso. Um dia depois de insinuar que os professores da rede estadual seriam argentários e irresponsáveis, Rossieli Soares enviou um e-mail um pouco mais ameno às escolas, em que insistiu no “grande prejuízo que a pandemia e o fechamento das escolas causaram”.

Esse diagnóstico confirma a necessidade de mantermos nossas escolas abertas, com as crianças em constante processo de aprendizagem, como sempre defendi. A única solução para evoluirmos nossos resultados é o estudante na escola. […] E é fundamental que a gente construa esse caminho juntos. Não vamos deixar ninguém para trás! (03 mar. 2022)

Embora menos belicoso do que na entrevista coletiva, Rossieli tentou tirar mais uma vez das próprias costas a responsabilidade pelo tombo dos indicadores do Saresp, ressaltando, em primeira pessoa, que ele sempre fora contra o fechamento das escolas. Seria ele tão vítima da situação quanto os estudantes que ficaram praticamente sem escola durante dois anos?

Cinismo transbordante

O foco nos resultados educacionais tem sido uma constante no estado de São Paulo ao longo dos 27 anos de reinado da dinastia tucana. Bonificação de estudantes e professores, controle hiperburocrático dos processos escolares e implantação de metodologias de gestão corporativa do tipo PDCA (usadas em fábricas e empresas) são alguns dos mecanismos utilizados ao longo dos anos para induzir o treinamento para os exames nas escolas estaduais de São Paulo.

Para o governo Doria, que recita diuturnamente a cantilena das metas e resultados, reconhecer publicamente o fracasso na elevação dos indicadores educacionais é particularmente dolorido. Diversos postos-chave da Seduc-SP foram ocupados por jovens arrivistas alçados à condição de “especialistas em educação” por fundações empresariais. Gente que encobre a própria mediocridade com prepotência e que jamais pisou numa sala de aula como professor.

De todos os governos tucanos, o de João Doria é o mais reacionário e o mais demofóbico. Eleito na onda do bolsonarismo, abandonou Bolsonaro, mas não o bolsonarismo. Em 2019, quando o primeiro tombo no Saresp já se afigurava no horizonte, a grande preocupação de Doria e Rossieli era em censurar apostilas de Ciências da Natureza por conta de discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas. Uma forma manter os vínculos entre o governo e os setores reacionários da sociedade com vistas às eleições de 2022.

Durante a pandemia, Rossieli tem sido o maior esteio do negacionismo dentro do governo estadual, em particular nas questões envolvendo dados de infecção por Covid-19 nas escolas e protocolos sanitários. Em diversos momentos, ficou evidente que as políticas da Seduc-SP estavam em franco desacordo com as recomendações da própria Secretaria da Saúde, o que nunca foi um problema para o secretário da educação, avalizado por Doria. O apagão das políticas educacionais no estado de São Paulo durante a pandemia foi extensivamente denunciado nos últimos dois anos, a exemplo do atraso de um ano na entrega de chips para os estudantes acessarem as aulas durante a suspensão das aulas em 2020 e da baixa execução orçamentária para a realização de reformas nas escolas em 2021.

Uma vez que diversas medidas potencialmente mitigadoras dos prejuízos de aprendizagem dos estudantes simplesmente não foram tomadas pela Seduc-SP durante a pandemia, e que já havia uma tendência de queda nos indicadores do Saresp desde o ano de 2019, o discurso monocausal e apocalíptico de Rossieli Soares atinge o ápice do cinismo. Ele usa a pandemia como desculpa, transfere a responsabilidade para os outros e, finalmente, anuncia que não pode fazer nada para reparar as perdas de estudantes que só têm a escola pública como opção na vida. É isso o que o adjetivo “irreparável” significa.

Que secretário de educação seria capaz de dizer “o que já era ruim, ficou pior” sobre a rede de ensino que ele mesmo administra há mais de três anos? Que administrador público seria capaz de postular “perdas irreparáveis” à aprendizagem de crianças e adolescentes, negando o potencial transformador dos processos educativos? Na rede estadual, corre o boato de que Rossieli Soares da Silva renunciará brevemente ao cargo de secretário para concorrer ao legislativo. Como educador, torço por ele nesta nova empreitada. Fará menos estrago do que como secretário da maior rede de ensino do país.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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