Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O que faremos no próximo verão?

A última moda são as máscaras transparentes para sabermos se as pessoas estão rindo ou chorando

Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro
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Eu era muito menino quando minha família se mudou pra Brasília. Brasília não era nada, era apenas poeira vermelha e tratores amarelos da Caterpillar fazendo terraplanagem,  levantando mais poeira ainda e cobrindo o céu do planalto central do país. Assim que os monumentos começaram a ganhar as formas de Oscar Niemeyer é que surgiu uma vontade danada de ser arquiteto. Comecei a sonhar com uma cidade planejada, organizada, diferente daquela zona que estava virando minha Belo Horizonte no início dos anos 1960. A Avenida do Contorno que rodeava a BH planejada, perdeu completamente o rumo e crescia como a raiz de uma árvore frondosa, pra todos os lados. Bairros surgiam da noite para o dia, junto com as vilas e favelas, numa mistura urbana e suburbana que minha cabeça não conseguia dar conta, colocar ordem. Então, do nada, surgiu Brasília, toda certinha. Terrenos enormes e planos para construir superquadras, muita grama, muita vegetação, os prédios virados um pra cá um pra lá, desconstruindo a invasão da intimidade. Eu tinha um caderno grande com folhas grossas e brancas, separadas por papel de seda. Ali desenhava bulevares, superquadras, coloria a grama de verde, plantava árvores, imaginava uma escola parque para cada quatro superquadras, um supermercado, uma igrejinha, o comércio. Abria túneis, passagens para pedestres, viadutos, tudo muito bem pensado. Essa ideia de ser arquiteto só saiu da minha cabeça quando voltamos pra Belo Horizonte e fomos morar na Rua da Bahia, no olho do furacão, centro da cidade, coração do caos. Achei que ali tinha mais vida do que Brasília. Cada cidade tem sua vida. Cataguases, Ponte Nova, Formiga, Alfenas, cidades pequenas. Eu gosto de metrópoles, Tóquio, Mumbai, Nova York, Istambul e a São Paulo que adotei e está lá fora. Há dias que não vejo.

O prédio do Itamaraty, em Brasília

Caminho entre muros no jardim do meu prédio. Trinta minutos contados no cronômetro do iPhone. No segundo andar, tem um cachorrinho desses de latido fino que não pode me ver que põe a boca no trombone. Acho que se espanta com a máscara. Late com a cabecinha do lado de fora da grade da varanda, nervosinho, raivoso. Tem uma sabiá fazendo ninho na primeira curva que faço. Dá dó. Toda vez que me aproximo ela voa assustada. Quando sumo da sua vista, ela volta pro ninho, mas quando aproximo novamente, ela voa de novo. E fica nisso durante trinta minutos. Já tentei mostrar a ela que não levo nenhum perigo ao seu ninho, mas não adianta, ainda não se acostumou comigo. Bem que poderia ficar ali, quietinha, chocando seus ovos. Outro dia tinham sete maços vazios de cigarros juntos no chão, todos da mesma marca, certamente do mesmo fumante, não sei de que andar. Já achei um jogo americano que deve ter caído da janela da cozinha de alguém e hoje achei um terço de madeira, bem bonito. Entreguei na portaria. O chão é de pedra e o jardim está muito florido. Dá gosto caminhar ali, apesar de meio tedioso ficar dando voltas. De vez em quando aparecem alguns companheiros de caminhada. Uma japonesa com a filha e um idoso que dá poucas voltas e senta-se no sol para fazer suas palavras cruzadas. Meu mundo lá embaixo é limitadíssimo. De vez em quando faço umas fotos. Do contraste do concreto com o céu azul, do cachorrinho latindo, do piso de pedras, da piscina vazia. Mas ainda não fotografei a sabiá, nem quis. Tenho receio de que ela se assuste mais ainda e abandone o seu ninho. Já fotografei também o tronco de uma árvore estranha, descascado, com manchas brancas como se tivesse vitiligo. Não tenho mais nada para contar. O salão de festas está fechado, a piscina está vazia, a brinquedoteca fechada, a academia trancada. O mundo parece que parou, mas eu continuo dando voltas. Até quando não sei, talvez até a sabiá chocar os seus ovinhos e nascerem os filhotinhos. Ai eu vou voltar, sei que ainda vou voltar a viver.  

Vivo em círculo, no interior de quadrados, e quando ligo a televisão, vejo milhares de vidas por um fio, em todas as regiões do país. Observo as máscaras cafonas do Esporte Clube Bahia, do Paysandu, do Tupi, do Figueirense, do Sampaio Correia. Meu coração vai ficando cada vez menor e cada vez mais na mão com a pobreza exposta do meu país. Nos barracos da cidade ninguém mais tem ilusão, o governador promete, o sistema diz não. Uma antiga canção entoada por John Lennon acompanhado da Plastic Ono Band volta a me fazer pensar, como naqueles últimos dias dos anos 1960. A canção chama-se God e o ex-Beatle rezava o seu rosário: Eu não acredito em mágica, eu não acredito em I-ching, eu não acredito em Bíblia, eu não acredito em Jesus. Nunca foi tão fácil traduzir o inglês, sem o auxílio luxuoso do Oxford Dictionary: I don’t believe in Hitler, I don’t believe in Jesus, I don’t believe in Kennedy, I don’t believe in Buda, I don’t believe in Mantra, I don’t believe in Gita, I don’t believe in Yoga. O som ia sumindo aos poucos e ele continuava sua ladainha: Eu não acredito em reis, eu não acredito em Elvis. De repente, com a voz um pouco mais doce: I don’t believe in Zimmerman! Foi aí que soube que o nome completo de Bob Dylan era Robert Allen Zimmerman. E terminou: Eu não acredito em Beatles, apenas acredito em mim, Yoko e eu. Essa é a realidade. O sonho acabou e o que posso dizer? Que eu não acredito em Doria, eu não acredito em Covas, eu não acredito em Caiado, eu não acredito em Jair, eu não acredito em Fabricio, eu não acredito em Flávio, eu não acredito em Wassef, eu não acredito em Guedes, eu não acredito em quarentena, eu não acredito em números, eu não acredito em Moro, eu não acredito em cloroquina, eu não acredito em Damares, eu não acredito em Salles, I dont believe in Brazil. The dream is over!

Aí, de repente, o mundo ficou esquisito pra caramba. Até as casas foram separadas umas das outras, distância mínima de cinco metros medida por uma trena dos vigilantes da saúde. Acabou o beijo, o falar no ouvido, o chupão no cangote, o escritório, o braço dado e a canção Aquele Abraço virou uma coisa tão do passado quanto nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia. Os dermatologistas passaram a ser chamados de pessoas da linha de frente, convocados para curar as mãos secas de tanto álcool gel, de tanta água com sabão. Os pés também secaram e enrugaram de tanta água sanitária, de tanto lysoform, Pinho Sol, de tanto pisar em tapetes antissépticos. Agora são apenas cabines individuais feitas de acrílico espalhadas por todos os cantos. Nos equipamentos das academias, nas mesas dos cafés, nas poltronas dos cinemas, nas cadeiras dos estádios de futebol, nas pistas de cooper nos parques, de dança dos inferninhos, nas raias das piscinas, até nas mesas de reuniões da repartição. No Recife, não se fala mais um cheiro pra você porque ninguém mais sente cheiro de ninguém. Ninguém se toca mais em ninguém, ninguém respira mais perto de ninguém, até o ridículo cumprimento de cotovelo caiu de moda. Inventaram a máquina de lavar compras, os sapatos com solas descartáveis, capacetes leves e maleáveis e plástico resistente para abraço apertado. A última moda são as máscaras transparentes para sabermos se as pessoas estão rindo ou chorando.  

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