3ª Turma

O que é isso: “Reforma” da Previdência?

Como no Chile de Pinochet, a verdadeira alteração das regras da previdência é a mudança do sistema de solidariedade para o de capitalização.

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Desde que Temer assumiu interinamente a Presidência da República, o tema da “reforma” da previdência está na pauta do dia. É verdade que o sistema de seguridade social vem sendo alterado, sempre para pior, desde a década de 1990. Nunca, porém, houve proposta tão agressiva como agora.

A primeira questão importante é que abandonemos definitivamente a expressão “reforma”, pois a PEC 06 não propõe alterações pontuais. Ao contrário, propõe mudar radicalmente o sistema de seguridade social no Brasil.

Em segundo lugar, o argumento de que é necessário “reformar”, mas “talvez em parâmetros diversos”, que vem sendo utilizado por setores bem intencionados da sociedade civil, sem que se diga, sequer, quais seriam, então, as alterações efetivamente necessárias, precisa ser definitivamente descartado. O fato é que alteração alguma deve ser defendida, pois aquela que seria desejável é completamente inviável no cenário atual.

Por fim, antes mesmo de analisar o texto da proposta de alteração constitucional, é preciso refletir acerca dos argumentos utilizados para sustentá-la.

O argumento inicial era o déficit do sistema.

Em aeroportos, no rádio e na TV, ampla campanha publicitária em favor das alterações nas regras da previdência foi veiculada, sob o argumento de que deficitária. O custo dessa campanha, em julho de 2017, foi de R$ 59,1 milhões de reais. Entre 2017 e o início de 2018, os gastos com a campanha somaram R$ 109.973.552,84. No início de 2018, mais R$ 50 milhões foram destinados pelo governo, para a mesma finalidade.

Esses dados já desafiam uma pergunta simples: se há déficit, se falta dinheiro, como o governo gasta tanto assim em campanha publicitária? E, se é realmente necessária a alteração, porque é tão difícil e custoso convencer a população desse fato?

Segundo estudo de José Dari Krein e Vitor Araújo Filgueiras, seria possível aumentar a receita da Previdência Social com o mero respeito à lei trabalhista: formalização do trabalho assalariado sem carteira assinada resultaria receita de R$ 47 bilhões;

  • o fim das remunerações “por fora” resultariam mais R$ 20 bilhões;
  • o reembolso pelas empresas das despesas com acidentes de trabalho, R$ 8,8 bilhões;
  • a extinção do enquadramento de acidentes de trabalho como doenças comuns, R$ 17 bilhões;
  • a eliminação das perdas de arrecadação por subnotificação de acidentes, R$ 13 bilhões.

Eles apontam, ainda, que apenas em 2014 foram extraídos do patrimônio da classe trabalhadora:

  • R$ 1,1 bilhão, com isenção para a Fifa;
  • R$ 2,1 bilhões, em desvios na Petrobrás;
  • R$13,2 bilhões, com desonerações na folha de pagamento;
  • R$ 2 bilhões, não recolhidos nas lides trabalhistas e
  • R$ 104 bilhões, em isenções tributárias.

Isso sem mencionar a sonegação institucionalizada através de acordos realizados todos os dias na Justiça do Trabalho, lançando verbas salariais como indenizatórias apenas para que não incidam encargos previdenciários.

Além disso, o mecanismo das Desvinculações de Recursos da União (DRU), vem desviando, para o pagamento da dívida pública, receitas que seriam da Seguridade Social. Só em 2015, essa desvinculação foi da ordem de R$ 63 bilhões.

Instaurada CPI da previdência, justamente para buscar entender que déficit era esse que o governo tão zelosamente pretendia sanar, o resultado final, cujo relatório de 253 páginas foi aprovado por unanimidade, vai no mesmo sentido:

  • a) não há déficit;
  • b) empresas privadas devem R$ 450 bilhões de reais à Previdência;
  • c) parte importante do valor arrecadado é utilizada para pagar outras dívidas, através da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e que
  • d) é possível aumentar o valor dos benefícios.

Isso mesmo, a CPI propõe “o aumento do teto dos benefícios pagos pelo INSS para 10 salários mínimos, o equivalente hoje a R$ 9.370,00, quase o dobro do valor atual”. Aponta, ainda, que basta criar mecanismos de combate às fraudes, ter mais rigor na cobrança dos grandes devedores e estancar o desvio de recursos para outros setores, para que tudo funcione de maneira inclusive a economizar recursos para o Estado.

Há trecho do relatório que salienta haver inconsistência de dados e de informações anunciadas pelo Poder Executivo, que “desenham um futuro aterrorizante e totalmente inverossímil”, com o intuito de acabar com a previdência pública e criar um campo para atuação das empresas privadas.

A campanha publicitária, realizada com muito dinheiro público, não disse a verdade. A Previdência Social é superavitária, portanto, não há justificativa para o aumento de contribuição; majoração do tempo para obtenção da aposentadoria ou a criação de dificuldades para a obtenção de benefícios.

Desvelada a fraude na propaganda oficial – sem que nada tenha sido feito para responsabilizar quem determinou o gasto de dinheiro público para convencer a população dessa mentira -, o governo simplesmente altera o discurso.

O argumento do déficit é substituído.

As alterações nas regras da previdência passam a ser justificadas como forma de economizar e de combater privilégios.

Essas alterações são, em resumo: exclusão do FGTS e do acréscimo de 40% sobre o FGTS para aposentados; endurecimento das regras para aposentadoria dos trabalhadores deficientes, especialmente às mulheres deficientes, bem como das regras para o pagamento do auxílio-reclusão, tornando-o praticamente inatingível.

Além disso, a proposta impõe limitação à cumulação de pensão por morte com aposentadoria; acaba com a regra 85/95 para segurados do INSS e servidores públicos, fixando outra regra de 105 pontos para homens e mulheres, ainda que em caráter transitório.

Fixa que a aposentadoria integral somente será alcançada com 40 anos de contribuição; aumenta de 15 para 20 anos o tempo mínimo de contribuição para contribuintes urbanos; praticamente acaba com a aposentadoria dos trabalhadores rurais, porque passa  a exigir a idade 60 anos para homens e mulheres além de mais 20 anos de contribuição, mais contribuição complementar.

Fixa a idade para a aposentadoria dos professores e professoras em 60 anos; reduz de 100% para 60% o valor da aposentadoria por invalidez para quem tem até 20 anos de contribuição; acaba com a aposentadoria especial dos trabalhadores em atividades insalubres; reduz de 100% para 50% a pensão por morte; acaba o BPC (benefício de prestação continuada) da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), que será substituído por uma renda de R$ 500,00 e R$ 750,00; altera a idade do BPC de um salário mínimo apenas para idosos acima de 70 anos e cria um benefício de R$ 400,00 para idosos de 60 a 70 anos, desde que comprovada a miserabilidade.

Além disso, o abono salarial de 1 salário mínimo passaria a ser devido apenas para quem ganha até um salário mínimo (e não até dois salários mínimos, como atualmente). Os servidores públicos que hoje tem direito à aposentadoria integral poderiam exercer o direito somente aos 65 anos de idade. Por fim, fixa a idade mínima para a aposentadoria em 65 anos para homens e 62 para mulheres, mas estabelece uma escala progressiva conforme o aumento da expectativa de vida.

Segundo os dados do IBGE, uma pessoa nascida no Brasil em 2017 tinha expectativa de viver, em média, até os 76 anos, três meses e 11 dias a mais do que para uma pessoa nascida em 2016. A expectativa de vida dos homens aumentou de 72,2 anos em 2016 para 72,5 anos em 2017, enquanto a das mulheres foi de 79,4 para 79,6 ano. A expectativa de vida aumentou 30,5 anos entre 1940 e 2017 e a dos idosos aumentou em 8,1 anos de 1940 a 2017.

A PEC 06 propõe a revisão periódica das idades para obtenção da aposentadoria integral. O desejado aumento da expectativa implicará aumento proporcional da idade mínima!

E o pior é perceber que todas essas alterações lesivas sequer são a pepita de ouro da proposta de alteração constitucional. O que realmente se pretende é a passagem do sistema de solidariedade para o de capitalização, que permitirá às empresas de previdência privada a exploração de um novo nicho econômico. Algo que, aliás, como demonstra a OIT em estudo recente, não deu certo em país algum do mundo.

O sistema de seguridade previsto na Constituição de 1988 está pautado na ideia de solidariedade, ou seja, de que aqueles que conseguem atuar dentro do sistema capitalista, vendendo sua força de trabalho, ajudarão a formar a reserva que permitirá a sobrevivência de quem não tem essa condição, porque nasceu com problemas graves de saúde, porque se acidentou no trabalho ou porque sofreu de um adoecimento que o impede de seguir trabalhando.

Portanto, a Previdência Social, que historicamente iniciou como regime privado e facultativo característico das associações mutualistas, passou pelos regimes de seguros sociais obrigatórios, acabou por se firmar como instrumento de justiça social, orientado pelo princípio da universalidade de cobertura e atendimento, de modo que se estende, inclusive, àqueles que, embora não contribuam, se encontrem em situação de indigência.

Esse é o aspecto fundamental, que a PEC pretende alterar. Nem todas as pessoas que nascem em um sistema capitalista conseguem dele fazer parte, atuando como fonte de riqueza. A noção de seguridade social parte justamente desse pressuposto: existe um dever social de sustentabilidade de todas e todos, independentemente de sua “utilidade” para o capital.

Quando Paulo Guedes anuncia que economizará de R$ 700 bilhões a R$ 1,3 trilhão de reais em dez anos, caso aprovado o desmanche, ele está apostando na supressão desse sistema. E para compreender o que isso significa basta pensar que conforme dados da Pnad Contínua Anual de 2017, 14,1% da população brasileira recebiam algum tipo de aposentadoria ou pensão, num total de R$ 51 bilhões, pagos a cerca de 29 milhões de pessoas todo mês. Mais de 80% dessas pessoas tinham na aposentadoria a única fonte de renda.

Quase 60% das famílias nas quais 50% ou mais da renda familiar eram provenientes da aposentadoria de um ou mais de seus membros (16 milhões de pessoas), tinham renda familiar per capita de 1 salário mínimo ou menos, e 32% dessas famílias (9 milhões de pessoas) tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos.

Ou seja, como informa reportagem recentemente divulgada, tais dados revelam que parcela expressiva da população depende inteira (ou principalmente) do benefício previdenciário para sobreviver. A economia de 1 trilhão de reais em dez anos somente será possível se esses benefícios forem simplesmente suprimidos e, como eles, também as vidas dessas pessoas.

Ao lado dessa pura e simples supressão de benefícios que permitem a sobrevivência física de milhões de pessoas, haverá a instituição de um “sistema obrigatório de capitalização individual”, “com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício”: eis aí o verdadeiro objetivo da “reforma”.

Cada trabalhador criará sua própria poupança. O valor versado pelo trabalhador, mês a mês, será depositado em conta individual, em seu nome. Ao atingir os requisitos para aposentadoria, o montante acumulado ao longo dos anos passará a ser a base para o cálculo do valor do benefício. É importante perceber que ao contrário de outros tipos de aplicações financeiras, o trabalhador não poderá escolher o momento em que recebe de volta seu próprio dinheiro. Para se aposentar com a integralidade do salário, terá que contribuir por 40 anos.

A questão é bastante simples: quem não trabalhar e versar montante suficiente para garantir uma aposentadoria minimamente decente não a terá.  E mais: ao longo da vida o dinheiro do trabalhador será gerido por um fundo de pensão, que o aplicará no mercado de ações. Se algo der errado e o fundo falir, por exemplo, não haverá aposentadoria. Do mesmo modo, quem não tiver condições de trabalho, não terá aposentadoria; quem passar por períodos de desemprego, não terá aposentadoria; quem trabalhar como falso autônomo não terá aposentadoria.

É interessante perceber que os defensores desse absurdo referem-se a sistemas de previdência como o da Noruega, mas silenciam sobre a realidade chilena, tão próxima de nós.

Na década de 1970, uma reforma similar àquela aqui proposta foi posta em prática pelo Ministro do Trabalho de Pinochet, José Piñera, criador dos fundos de pensão e do sistema de capitalização. O chamado “plan laboral de 1979” foi a manifestação de um processo bem mais amplo de privatização e desmanche do Estado, especialmente quanto ao sistema de seguridade social, parecido com o que hoje vivenciamos no Brasil. O resultado foi a pauperização das pessoas em idade de aposentadoria e a elevação do número de suicídio entre idosos que não conseguem sobreviver com dignidade.

Como no Chile de Pinochet, a verdadeira questão em relação à alteração das regras da previdência é a mudança do sistema de solidariedade para o de capitalização.

O que se pretende é a viabilização de um negócio altamente lucrativo: os fundos de pensão que, não por acaso, são geridos por grandes multinacionais e instituições financeiras.

O argumento utilizado pelo governo, de que haverá uma economia que irá variar de R$ 700 bilhões a R$ 1,3 trilhão de reais desafia ainda uma outra pergunta: para onde vai o dinheiro supostamente economizado?

Ora, todos sabemos que com a Emenda Constitucional 95 congelando gastos sociais, o certo é que esses recursos não irão para saúde, moradia, educação ou fomento de postos de trabalho.

Em claras palavras, a PEC 06, que nada reforma, apenas destrói, nada tem de positivo. Propõe ainda mais desmanche, agora com proporções capazes de comprometer não apenas a nossa, mas também as gerações futuras.  

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