Diversidade

O que ‘A Mulher da Casa Abandonada’ nos diz sobre a expiação do racismo e a espetacularização da miséria?

Podcast exibe o caráter terapêutico de figuras como Margarida Bonetti, que servem para manter a casa grande em seus sonos injustos.

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Adela e Pablo não falavam de outra coisa. Tudo era a casa.”, a obra de terror e ficção da autora argentina Mariana Enríquez, ecoa em seu quarto conto os sussurros de uma obsessão que se tornou nacional no último mês. Se os personagens Adela e Pablo foram capturados por uma perigosa paranoia em torno de uma casa abandonada, chegando ao ponto de intentar em invadi-la para que enfim descobrissem quais mistérios sórdidos poderiam ser contados por suas paredes, parte da população foi arrastada para dentro de uma obsessão muito parecida, conduzida pelo jornalismo literário de Chico Felitti no podcast A Mulher da Casa Abandonada.

Lançado em primeiro de junho deste ano, desde o seu primeiro episódio o programa cativou a curiosidade dos espectadores com a aura de mistérios que circundava uma excêntrica senhora do bairro de Higienópolis, em São Paulo. Margarida Bonetti, que se apresenta como “Mari”, com sua insistência em defender teorias da conspiração a respeito de órgãos do município, sua grossa camada de pomada branca e sua casa abandonada, era visivelmente um prato cheio para o jornalismo literário e para aqueles que de longe conseguem farejar uma história.

Chico Felitti nos guia nessa narrativa, sobretudo, com os ares investigativos de quem busca manter o rigor do jornalismo, mas esbarra em duas grandes pedras: o racismo recreativo e a espetacularização da miséria.

Pois Margarida Bonetti, a mulher que lançava dejetos pela janela e vivia em estado de temor, não se tratava meramente de uma senhora excêntrica e necessitada de cuidados, mas sim de uma foragida da justiça cujos delitos envolviam trabalho análogo à escravidão e cárcere privado por vinte anos, crimes esses cometidos contra uma mulher negra levada por ela aos Estados Unidos para trabalhar como funcionária doméstica em décadas passadas.

A história de Bonetti, que pertence à uma família de alto escalação do estado de São Paulo, escancara sem cerimônia as raízes hediondas da elite brasileira, que retira o colonialismo de um suposto passado e o põe em evidência diariamente através de sua ânsia por reafirmar que mulheres negras são indivíduos subalternos e indignos de humanidade plena. Entretanto, a repercussão do Podcast A Casa Abandonada, também nos exibe o caráter terapêutico de figuras como Margarida Bonetti, que servem, baseando-se em Conceição Evaristo, para manter a casa grande em seus sonos injustos.

Afinal, desde tempos imemoriais, a expiação de um indivíduo que receberia sobre si todas as mazelas de uma comunidade ou de um tempo, sempre reconfortou o imaginário popular através do frenesi de uma libertação da culpa. A elite carece que algumas Margaridas Bonetti sejam expostas, escrachadas e publicamente destruídas, para que possa abstrair de si o fato de que também comunga e é a gênese dos projetos de sociedade e comportamentos que visam manter mulheres e homens negros em situação de profunda vulnerabilidade.

Este fenômeno expiatório explica de forma visceral o ódio que algumas figuras que por vezes não assinam as carteiras de suas funcionárias domésticas, ou consideram aceitável a antiga prática de “trazer meninas do interior” para que estas “trabalhem” nas conhecidas casas de madame, sentiram de Margarida.

Assombrados pelo mito da democracia racial, tão bem explicitado pela socióloga e escritora Lélia Gonzalez, sabemos que no contrato social à brasileira, o racista sempre será o outro e este outro, quando descoberto, merece ser punido. Afinal, permanece como símbolo de uma sociedade antiquada e brutalizada a qual desejamos superar. “Não, nenhum de nós é racista. O racismo é um ato praticado por ignorantes, por degenerados e loucos”, alguns sustentam.

E nesta ânsia tão comum às novas gerações, de tornar questões sociais complexas em simulacros altamente subjetivos, perde-se a tônica mais importante: estamos enfrentando uma estrutura social que se alimenta da exploração do trabalho doméstico de mulheres negras, mestiças e pobres no Brasil. Estrutura esta que por vezes é alimentada por aqueles e aquelas que afirmam estar ao nosso lado e detestar pessoas como Margarida Benetti.

Não surpreendentemente, a história escalonou para um grande circo, digno de comentários a respeito da pele da mulher e indivíduos se aglomerando em frente à sua casa, enquanto outros se responsabilizavam por tomar de seus braços um cachorro de estimação ou instigá-la em frente às câmeras. Aquilo que almejava manter os ares de jornalismo literário e responsável, aguçou o imaginário das pessoas ao ponto de deixá-las como os personagens Adela e Pablo da autora Mariana Enríquez, escancarando assim mais sobre elas mesmas e as estruturas de nossa sociedade, do que sobre o jornalista e o próprio Podcast.

As pessoas sentiram a sede por esmiuçar cada uma das partículas da história, tal se tratasse de um thriller de suspense e mistério, não da história real de uma mulher negra mantida em cárcere privado por vinte anos e uma mulher que se evadiu de outro país para não cumprir a sua pena. A história da Mulher da Casa Abandonada é um retrato fidedigno de como as questões raciais e de classe sexual são tratadas no Brasil. Fragmentadas, espetacularizadas e, por vezes, retiradas de seu contexto social abrangente.

Margarida Benetti se tornou um bode expiatório, porque ainda é inconcebível para nós, como sociedade, encararmos a ferida aberta e malcheirosa do racismo e da afromisoginia, que através de suas nuances sociais, econômicas e culturais, transforma mulheres negras em prisioneiras que são enclausuradas para sempre, não em uma Casa Abandonada, mais nos quartinhos de empregada, nas cozinhas de madame e nos grilhões dos quais ainda não podem escapar.

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