Diversidade

O Oscar, a ABL e o Catar nos interessam?

Alguns espaços podem e devem ser invadidos por corpos sub-representados, mas para que e a que custo? É preciso saber invadir e, sobretudo, resistir

Momento entre Will Smith e Chris Rock gerou punição pela Academia. Foto: Reprodução
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Senhoras e senhores, Will Smith foi banido do Oscar por DEZ anos… Já era de se esperar, mas ainda sigo incrédula e revoltada com o racismo hollywoodiano.

Durante a cerimônia deste ano, Chris Rock ofendeu Jada Pinkett-Smith com uma piada. Como reação, Will deu um tapa no humorista. Quanto mais o tempo passa, mais Chris Rock silencia, enquanto o furdúncio em torno de Will Smith fica mais alto. O choro veio na premiação junto a um pedido de desculpas. Pouco depois, um pedido de desculpas por escrito, mas desculpas não valeram de nada. Pra gente preta nunca vale… Duas produções dele canceladas em Hollywood, uma clínica de reabilitação e, agora, o banimento. Whaaat??? Em menos de uma hora, aposto que Will sofrerá outra rebordosa. 

Ao mesmo tempo, vejo partir Lygia Fagundes Telles, sinto muito, mas num primeiro lampejo imagino “será que, agora, dona Conceição chega lá?”. Já faz (quantos?) uns seis mortos da Academia Brasileira de Letras, a ABL, que aguardamos ansiosamente que Conceição Evaristo seja reconhecida como se deve: uma imortal. Uma mulher preta brilhante, das muitas brasileiras que existem, tem o direito de fazer parte desse clubinho até ontem machista e… nada. Vamos nos conformar com a imagem de Gilberto Gil tomando posse de sua cadeira?

Tento mudar o foco, mas o Catar salta à minha frente. Rolou um sorteio com as seleções… É, está todo mundo em polvorosa com o fim da pandemia e a possibilidade de celebração da Copa. Gente que condena a Guerra da Ucrânia, mas vai ao Catar assistir times do mundo inteiro jogar? Interessante… Enquanto isso, o Catar anuncia que bandeiras e símbolos nas cores do arco-íris, que representam o movimento LGBTQIAP+, podem ser confiscadas dos torcedores. Pode isso, Arnaldo? No Catar, pode. Eles dizem que é para “evitar que simpatizantes do movimento sejam atacados”. 

Gente. Estamos. Falando. De. Pessoas. No. Maior. Evento. Esportivo. Do. Mundo. Serem. Atacadas. Num. País. Sede. Por. Levantarem. Uma. Bandeira. Gay. 

“Se o torcedor levantou a bandeira do arco-íris e eu a peguei dele, não é porque eu realmente quero insultá-lo, mas para protegê-lo. Porque se não for eu, alguém ao redor dele pode atacá-lo… Não posso garantir o comportamento de todo o povo. E eu direi a ele: ‘Por favor, não há necessidade de levantar essa bandeira neste momento.” disse major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari em uma entrevista.

O que está acontecendo? 

Afinal, por que um país como o Catar – legalmente homofóbico –  pode receber uma Copa do Mundo? Por que ainda fazemos tanta questão de que Conceição Evaristo adentre a ABL? E quando foi que as pessoas começaram a acreditar que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas americana deixou de ser racista? Nunca foram e sempre serão: racistas, homofóbicos, transfóbicos e misóginos, principalmente se continuarmos sentando à mesa com eles, como se nada estivesse acontecendo. 

O Oscar

Na semana da cerimônia do Oscar, li algumas matérias celebrando a diversidade na maior premiação mundial do cinema. E eu fiquei buscando a diversidade… Não encontrei.

Sejamos sinceros. Mesmo que tenhamos pessoas negras no Oscar, nós nunca estivemos verdadeiramente lá e, na primeira oportunidade que tiverem, vão nos mostrar isso – como estão mostrando ao Will. Não é só sobre o Oscar, nem sobre Hollywood. É sobre o cinema e o mundo todo.

Em 2003, Adrien Brody, um ator branco, enquanto era premiado pela atuação em “O Pianista”, se sentiu no direito de dar um beijo à força na boca de Halle Berry, uma atriz negra, que sem ação performou como se estivesse numa cena de um filme. Não estava. Continuou na cena mas com um certo incômodo logo depois. Outros tempos? Se tornou o que eles chamam de “um dos momentos mais inesquecíveis das cerimônias do Oscar”. 

Essa cena se repetiria da mesma forma, hoje? Não dá pra saber. Mas a ver pela maneira como diminuem o fato de que Jada foi ofendida e, até agora, ninguém pediu desculpas a ela, já sabemos a resposta. 

Para algumas pessoas, talvez, a sensação depois do tapa do Will e o abuso de Adrien são as mesmas, mas a medida e os pesos são diferentes.

No ano seguinte, Adrien voltou ao Dolby Theater para entregar o prêmio de Melhor Atriz para Charlize Theron, fez piada com sua atitude abusiva na premiação passada e beijou outra atriz. Enquanto Will foi sumariamente cancelado.

Fora daquele palco, muitos outros homens – brancos – se sentiram no direito de agir como Adrien e até pior: Roman Polanski, Harvey Weinstein, Casey Affleck… a lista não tem fim. Eles fazem, demoram a ser descobertos, poucas vezes são condenados e muito menos cancelados.

Quem é cancelado por meio mundo, inclusive Hollywood, é Will Smith – um homem preto. E sua mulher preta não é digna de um pedido de desculpas ou defesa.

Desde 1929, Halle Berry foi a primeira – e única mulher negra – a vencer o Oscar de Melhor Atriz. Will Smith, o quinto homem negro na história a vencer a premiação nesta categoria. De 3.140 prêmios em 94 edições, apenas 44 foram para profissionais negros e negras. Quarenta e quatro em mais de três mil. Duas pessoas trans pisaram no palco da premiação apenas.

Sintomas de uma Hollywood que não só é racista como misógina e transfóbica.

Então, sinceramente, tirem as pessoas pretas da sala, o Dolby Theater que se exploda.

A ABL

Apesar de a ABL ser uma instituição fundada e liderada inicialmente por um homem negro, Machado de Assis, a Academia teve apenas outros dois homens negros entre seus membros, em 124 anos – Domício Proença Filho e Gilberto Gil, eleito ano passado e que tomou posse essa semana. Às mulheres foi negado acesso formalmente até 1976. Rachel de Queiroz foi a primeira mulher branca a tomar posse em 1977. Ao todo, nove mulheres brancas têm seus nomes grafados no ABL, inclusive Fernanda Montenegro que tomou posse em 2021.

E sobre mulheres negras… Bom, vocês já sabem: zero cadeiras, mesmo com uma comoção coletiva para que Conceição Evaristo fosse nomeada nos últimos anos. Com Fernanda Montenegro, ninguém concorreu. Com Conceição Evaristo, dois homens brancos competiram e levaram mais votos que ela. 

Como pergunta Djamila Ribeiro – Quem tem medo do feminismo negro? Certamente a ABL. 

Não queriam mulheres nesses espaços, não querem pessoas negras nesses espaços, principalmente mulheres negras como dona Conceição, que com uma canetada faria todas as demais cadeiras ao seu redor estremecerem e se incomodarem com as escrevências de uma mulher que usa as palavras para denunciar justamente o comportamento de muitas pessoas que continuam firmando um pacto de branquitude ali dentro.

Conceição Evaristo não entra porque é uma mulher que nunca deixará de incomodar. A candidatura dela, inclusive, já é um gesto calculado e provocador a uma instituição cujo histórico é racista, machista e misógino.

O Catar

No Catar, podemos até celebrar e vibrar a cada gol que sair por lá, mas estaremos pulando de alegria sobre corpos que são violentados – “atacados” segundo organizador da Copa – por algo tão arcaico – a homofobia, a transfobia. É o retrato da involução dos tempos, um atentado constante aos direitos humanos sem cobranças internacionais.

O Oscar, a ABL, o Catar, são três exemplos de lugares, portas e mesas que alguns de nós vão se aventurar a embarcar, entrar, atravessar, ocupar e se sentar. Mas para quê? A que custo? Fazer parte… Mas do que que exatamente? Não tem resposta certa.

É legítimo o direito de estar em espaços que sempre foram nossos, mas foram historicamente usurpados. Mas precisamos de muita estratégia, muita coragem e muito equilíbrio emocional para encarar esses portais, mesmo quando não temos o intuito de militar.

Você pode até receber um convite para um banquete, mas tem que entender se você está no banquete porque de fato te desejam ali e sua presença é relevante ou se querem você como prato principal ou como bobo da corte, ou os últimos dois juntos. Chris Rock é um bobo da corte. Will não só o bobo, como o prato principal, ainda saboreado.

Tem lugares aos quais atribuímos um significado ímpar ocupar – o auge para uma carreira, mas em que não nos deixarão entrar. E o que de fato significa ser barrado em determinadas portas? Como seguirá nosso emocional depois de reiterados “nãos”? Não podemos nunca medir o nosso valor pela nota de quem faz a triagem na porta. O que a ABL fez pela literatura negra brasileira? O que Conceição Evaristo já fez por nós, em cada página que escreve – e foram muitas – mesmo sem a ABL?

O que é a ABL diante de nós se comparada à grandiosidade de Conceição Evaristo? Por que a ABL não a quer lá, como outras mulheres e homens pretos?

Por fim, tem portas que devemos entrar, mas não de qualquer maneira. Nesses lugares, passar pelo batente e sentar-se à mesa com nossos algozes é corroborar com tudo o que está rolando dentro daquela festa. Como cobrar por direitos humanos diante do mundo e pisar o gramado num país que fere corpos por serem o que são? 

Muitas guerras precisam ser travadas. Porque a revolução só vem depois de muitas batalhas. Mas que estratégias estamos utilizando ao pisar nesses espaços? 

Lewis Hamilton, por exemplo, um homem negro, ativista – o melhor piloto de fórmula 1 da atualidade – já esteve no Catar, fez a parte dele nas pistas e criou uma estratégia para protestar mesmo sem necessariamente dizer uma palavra. Pediu escrutínio contra violações dos direitos humanos no país e na Arábia Saudita e usou um capacete com as cores da bandeira LGBTQIAP+ em uma mensagem de apoio à diversidade. “Conforme as competições esportivas vão para esses locais, elas têm o dever de colocar em foco esses problemas. Esses lugares precisam de escrutínio. Direitos iguais são uma questão séria”, disse ele na época. Fez barulho sem gritar. 

Sabemos que o esporte tem rédeas curtas para manifestações em prol dos direitos humanos e o preço que se paga por protestar é alto demais. Por vezes, uma carreira inteira. Sabemos também que absolutamente nada mudou sem que esportistas descobrissem estratégias para mudar o aparentemente imutável. Quem ousará gritar pelos direitos humanos na Copa do Mundo do Catar?

Tem lugares que podemos, devemos  entrar e entraremos. No Brasil, se decidirmos por não entrar em certas portas, 56% da população seguirá sem sair do lugar.  E, logicamente, nós – pessoas não-brancas, mulheres, LGBTQIAP+ e outros corpos subrepresentados – sabemos que também temos lugares que nos acolhem, são confortáveis de ficar e, sobre esses, já sabemos e sentimos muito bem sem questionar. Mas, pisar fora de casa é um estado de alerta constante e, na maioria das vezes, exaustivo. Mas ainda sim é melhor do que ser ferido com a guarda baixa. 

É como diz Exu, não durmam com os olhos dos outros. E eu vejo tanta gente entre as minhas e os meus dormindo com os olhos dos outros. Temos que entender muito profundamente que existem corpos, espaços e espaços. Quando o Denzel Washington chama Will Smith no canto durante a cerimônia do Oscar e diz que é no auge que o demônio te ataca, ele sabe exatamente do que está falando. Porque o demônio de quem não quer nossos corpos nos espaços – nem no planeta Terra – age de formas misteriosas. E eles nem se esforçam para serem tão misteriosos assim, né?

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