César Simoni

[email protected]

É professor, coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da USP.

Opinião

O coronavírus e o direito à cidade dos pobres

A captura da vida urbana pelo tempo irremediável da acumulação e pela busca incessante do lucro impõe o princípio da cidade que não para

(Foto: Wikimedia Commons)
Apoie Siga-nos no

Se o vírus causador da pandemia tivesse um DNA, ele traria o gene da sociedade urbana. Diferentemente de doenças como a febre amarela, a dengue ou a hantavirose, a doença causada pelo Sars-CoV-2 não encontraria meios de dispersão eficientes em um planeta coberto de aldeias e comunidades rurais.

Diante da novidade, da extensão, da letalidade e da velocidade do contágio pelo novo coronavírus, a profilaxia foi estabelecida menos no âmbito da biomedicina do que nos âmbitos social e urbano. A principal frente de combate à pandemia se dirige, assim, por esse componente genético: é contra a própria forma da proximidade, do encontro e da reunião dos corpos que o ataque à doença se volta.

Para deixar mais claro o que se quer dizer com isso, uma observação a respeito do que constitui a sociedade urbana pode ajudar. Henri Lefebvre, um dos mais importantes pensadores da problemática urbana contemporânea, chegou à conclusão de que o encontro, a concentração e a centralidade constituiriam elementos inseparáveis dessa forma de sociabilidade edificada durante o século XX.

A troca, que é o fundamento do comércio e de todo o metabolismo social e biológico, faz do espaço urbano o seu lugar. A proximidade, a vizinhança e o convívio estão no inventário das riquezas do modo de vida urbano, o qual geógrafos, demógrafos e estatísticos não raramente vinculam à noção de aglomeração. Estão aí a fortuna e a potência de uma solidariedade involuntária, a partir da qual os diferentes se encontram, os contrários se tocam, os trabalhos se completam e a vida se compartilha. Reconhecer essas faculdades da vida urbana não implica em desfazer-se da crítica ao que se passa nas cidades e metrópoles ao redor do mundo.

A forma do encontro, da complementariedade, da aglomeração e da concentração tornou-se serva da acumulação de riquezas durante o processo de modernização. Um regime econômico fundado na privação criou as condições que explicam o aumento dos sem-teto, o crescimento das favelas, a multiplicação dos moradores de rua e o adensamento da horda de transeuntes e passageiros que perdem horas de seus dias em deslocamentos exaustivos e vazios de sentido próprio.

Para esses, a aglomeração é sinônimo de fadiga, das interdições e da estratificação social. Ao mesmo tempo em que o urbano é a concentração de riqueza, ele é também a concentração da pobreza: enquanto reúne e agrega, ele é exclusão e segregação socioespacial simultaneamente. Essa é uma das contradições entre a forma e os conteúdos do urbano. Seja tomado em suas potencialidades, seja apreendido por sua face crítica, é o sentido e o fundamento da vida urbana que são postos em questão diante das medidas sanitárias que impõem o distanciamento físico e a separação dos corpos. Nesse contexto, forma urbana e profilaxia social entram em conflito, e esse conflito é agravado pelo tempo rápido dos negócios e da circulação da riqueza. Eis aqui o fundamento do slogan milanês ante do avanço da ameaça.

A captura da vida urbana pelo tempo irremediável da acumulação e pela busca incessante do lucro impõe o princípio da cidade que não para. No Brasil, essa pulsão econômica antissocial parece estar vencendo em alguns lugares, especialmente nos espaços da pobreza. Essa realidade tem transformado algumas áreas que se mantiveram inicialmente protegidas da chegada do vírus ao país em verdadeiras estufas da pandemia.

O efeito catalizador acionado nas periferias, de uma doença vetorizada pelos negócios e pelo turismo internacional, tem o potencial de causar enormes transformações e prejuízos a toda sociedade brasileira. A falta de uma coordenação nacional e de uma posição clara do governo federal, a inexistência de testes, a escassez de equipamentos de proteção individual, a proliferação das chamadas fake news, a situação de informalidade dos trabalhadores, a precariedade das condições de trabalho, os ruídos diplomáticos e a insuficiência dos dispositivos de seguridade social de emergência, têm sobrecarregado a gigantesca estrutura do sistema único de saúde que, apesar de figurar entre os pontos altos da recepção brasileira da Covid-19, não poderia ter sido programada para ter de lidar com o universo das imposturas que atiçam o caos.

Diferentemente da ideologia neoliberal convencional, que se rebaixa diante da inegável importância dos dispositivos de cuidado comunitário e da evidente calamitosa pobreza do espírito empreendedor individualista, a mistura explosiva resultante de nosso neoliberalismo de milícias assume o comando da necropolítica brasileira. A sua prerrogativa evidente no campo de batalha é a ação insondável de um vírus que se propaga desigualmente sem a marca de sua destinação social e com a vantagem de uma semana de incubação à frente das medidas de proteção. O seu potencial entrópico, no entanto, também advém de suas estratégias. Tornados clusters da reprodução orquestrada do vírus, assim, alguns espaços carentes de infraestrutura sanitária e de circulação adequadas são também aqueles espaços em que, independentemente da percepção do risco, a informalidade e a falta de seguridade não permitiram o distanciamento físico na realização das tarefas.

O tempo do lucro, imposto sob ameaça de morte àqueles que dependem do trabalho do dia para comer a noite, se apropriou da potência urbana do encontro e da proximidade. É desse ponto de vista que a sociedade não pode parar, levando ao sacrifício o contingente economicamente supérfluo. Tendo a função de incubadoras do surto pandêmico sido transferida das áreas nobres às periferias e aos espaços de concentração da pobreza, não haverá espaço a salvo: a mobilização do trabalho na metrópole arremata o serviço pandêmico iniciado pela mobilização do capital. Os trabalhadores convocados em meio à quarentena levaram a cepa recém chegada do miolo rico da zona oeste às mais longínquas áreas da metrópole de São Paulo e, assim, não somente ajudaram a dispersão do vírus nessas áreas como também, e agora juntamente com outros trabalhadores impedidos de se confinar e de proteger suas famílias, continuam a servir de vetores para o contagio cada vez mais difuso.

A aversão ao tempo lento e a precariedade impiedosamente rentável das condições de trabalho, combinadas ao novo ingrediente virulento, converteram a forma do encontro e da aglomeração em um reprovável e potente sistema urbano de contaminação verde e amarelo. O que resta do urbano em tempos de pandemia capitalista por aqui é oferecido sem chance de recusa aos condenados pelo mundo do trabalho: eis o avesso do direito à cidade.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo