Patrícia Valim

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Professora do departamento de História da Universidade Federal da Bahia.

Opinião

O Brasil volta a respirar quando a imprensa abandonar seu Frankenstein

A revolta de ocasião da grande imprensa não esconde o passado, escreve Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia

O presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Isac Nóbrega/PR
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O político Jair Messias Bolsonaro é uma criação da imprensa brasileira. Garantia de polêmica, neste artigo quero chamar atenção para um aspecto desse processo: o crescente espaço que a grande imprensa do Sudeste deu a Bolsonaro desde o fim da ditadura, com a desculpa de “ouvir o outro lado”.

As páginas amarelas da Veja, por exemplo, foram ocupadas por ele pela primeira vez em outubro de 1986. No texto, Bolsonaro atribuiu à precariedade dos salários dos oficiais de baixa patente e a dificuldade de progressão na carreira ao “caos da Nova República”.

O enorme destaque de sua prisão por desobediência militar resultou na primeira eleição de Jair Bolsonaro como vereador e dois anos depois como deputado estadual. Os fatos confirmam o resultado do artigo “Não falo o que o povo quer, eu sou o que o povo quer”, uma análise aprofundada das matérias publicadas sobre Jair Bolsonaro nos dois maiores jornais de São Paulo: a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo entre 1987 e 2017. Por meio de técnicas de webscraping, o grupo de autores obteve 978 matérias no acervo da Folha e 692 matérias no acervo d’O Estado que continham, ao menos uma vez, o termo “Bolsonaro”.

O estudo também demonstrou que até 2017, o jornal O Globo gerou 2.263 páginas de matérias que continham, ao menos uma vez, o termo “Bolsonaro”. A coleta no Jornal do Brasil, que estava em andamento quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, sugere um número ainda maior de matérias com detalhes particulares sobre a sua atuação política.

 

As reportagens analisadas, apontam, ajudaram a consolidar a imagem pública do então deputado federal Jair Bolsonaro como a de um político de extrema-direita e radicalmente contra os direitos humanos.

É importante lembrar do alerta do jornalista Paulo José Cunha no programa A mídia e o caso Bolsonaro, ainda em 2011, transmitido pela TV Câmara, para saber se Jair Bolsonaro falava por si mesmo ou se ele representava fatias da população brasileira que pensavam da mesma forma. A resposta começou a vir a público a partir do processo de impeachment da ex presidenta Dilma Rousseff, em 2016, quando Jair Messias Bolsonaro era o único a alcançar quatro representações no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados desde a criação do órgão em 2001.

De um lado, artistas e entidades da sociedade civil organizada denunciando a violência dos discursos do Bolsonaro no Comitê de Ética, pedindo sua cassação. De outro, havia o crescimento exponencial de comunidades, a maioria jovens que se identificavam como apoiadores de Bolsonaro na rede social Orkut.

Em 2018, depois de enaltecer em rede nacional e internacional os crimes do torturador confesso Brilhante Ustra, o então presidenciável bateu recorde de denúncias por falta de decoro e violação dos Direitos Humanos na Corregedoria da Câmara. Essas acusações resultaram em seis punições orais, em broncas. Já a repercussão delas consolidou o bolsonarismo na cena política brasileira.

Naturalizar a violência e estabelecer relações de equivalência foi a tônica do editorial “Uma escolha muito difícil” do jornal O Estado de São Paulo, de 08 de outubro de 2018: “de um lado, o direitista Jair Bolsonaro, o truculento apologista da ditadura militar; de outro, o esquerdista Fernando Haddad, o preposto de um presidiário. Não será nada fácil para o eleitor decidir-se entre um e outro”.

Para derrotar a centro-esquerda, tentou-se estabelecer relações de falsas equivalências e dar ares de moderação à extrema-direita. Não podemos negar as aparências e disfarçar as evidências sobre o papel da grande imprensa para a vitória do necroliberalismo no Brasil.

Em respeito aos familiares das milhares de pessoas mortas nos últimos dois anos, o momento pede seriedade e responsabilidade, sem o cinismo do editorial de 21 de janeiro de 2021, “A alternativa a Bolsonaro”, no qual o Estadão mandou um recado para as forças políticas que fazem oposição a esse governo: “o mais inepto presidente da história só se segura porque não foram reunidas condições políticas para afastamento constitucional [impeachment]”. A revolta de ocasião não esconde o passado. Jair Bolsonaro só cairá quando essa imprensa deixar de militar no necroliberalismo e entender que todxs ganham com a democracia.

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