Ramón-García Fernández

Opinião

O Brasil iniciou a travessia para um futuro horripilante. Mas ainda é possível corrigir a rota

Se o quadro era tão promissor, a grande questão é entender por que esse círculo virtuoso se interrompeu

A indústria se beneficiou das isenções e depois atacou Dilma pelo déficit
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Sou um argentino que mora desde 1976 no Brasil. Minha formação acadêmica é 100% brasileira. Pensando para escrever este artigo, lembrei de uma das minhas primeiras conversas no País, antes de imaginar que viraria economista e estruturaria toda a minha vida por aqui. Meu interlocutor, um executivo argentino de uma multinacional, manifestava sua preocupação, compartilhada segundo ele por muitos colegas: “O Brasil vinha muito bem, mas o ano passado foi ruim, a economia só cresceu 5%”.

Não posso lembrar dessa conversa sem ironia e nostalgia. Se nos cinco anos seguintes o crescimento da economia se manteve entre esses 5% ou algo mais, a partir da crise da dívida do início dos anos 1980 aquele Brasil da “convenção do crescimento”, como a chamara Fábio Erber, se foi. Só em oito dos últimos 40 anos o Brasil chegaria a crescer mais que esses 5%.

Os primeiros três desses oito anos, de 1984 a 1986, os anos nos quais se veriam os frutos da marcha forçada, na magistral analogia de Antônio Barros de Castro e Francisco Eduardo Pires de Souza, a partir da qual crescimento e concentração não precisariam mais marchar ao uníssono. Todavia, essa esperança de um Brasil que começaria a crescer a partir de suas próprias forças revelou-se ilusória. Por um lado, surgiam as tensões de uma redemocratização na qual todos os postergados do Milagre queriam, compreensivelmente, reclamar sua fatia do lendário bolo do ministro Delfim Netto. Somava-se a isso o fracasso do Plano Cruzado em ambiente hostil, no qual a Nova República se encontrava asfixiada pela crise da dívida.

Com efeito, ficou clara a incapacidade de as nações prejudicadas pela crise da dívida, especialmente Brasil, Argentina e México, agirem em conjunto. A pressão dos organismos internacionais e a retomada do ­comando­ da economia mundial pelos EUA no período da crise do chamado “socialismo real” jogariam a pá de cal naqueles sonhos. Desse período ficou como grande obra a “Constituição Cidadã” que, como as lendas do rock, morreu aos 27 anos. Neste caso, não de overdose, senão assassinada pelo golpe parlamentar que derrubou sem justificativas uma presidenta legítima.

RAMÓN-GARCÍA FERNÁNDEZ:Nascido em Buenos Aires, vive no Brasil há 45 anos. Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, é professor titular da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Aqueles que não viveram naquele período, ao olharem os dados, ficam espantados com os valores absolutos dos índices de inflação. Creia-se ou não, a correção monetária, a indexação e outros mecanismos tinham conseguido que as pessoas convivessem razoavelmente com o dragão inflacionário, especialmente se estivessem no setor formal da economia. Como sempre, no setor informal a situação era pior, mas o desemprego causava estragos muito maiores do que os da inflação. Tentativas de matar esse dragão com a proverbial bala de prata, tal como a disparada pelo caçador de marajás eleito em 1989, causaram muito mais estragos no atirador do que no alvo. Todavia, uma hábil releitura do fracasso do Plano Cruzado, num contexto internacional favorável, permitiu o quarto desses oito anos de crescimento acima de 5%: 1994, o ano do Plano Real, aquele no qual o fantasma da inflação foi definitivamente afastado. Os anos do Consenso de ­Washington com suas políticas neoliberais, bem como o alardeado “fim da história”, finalmente sorriam para o Brasil.

Acabar com a inflação não foi, porém, gratuito: boa parte da indústria nacional sucumbiu ou foi desnacionalizada nos anos de “inserção no mundo” inaugurados em 1990. As empresas públicas, construídas com o esforço de milhões de involuntários sócios minoritários que nunca tiveram o comando efetivo delas, foram privatizadas por valores que em geral só se justificam pelo desejo de vendê-las logo, pois eram vistas como um ônus e não como um bônus para as gerações presentes e futuras. A analogia dos herdeiros que vendem barato as joias da família para apostarem nos cassinos de Las Vegas pode ser algo exagerada, mas não deixa de ter seu fundo de verdade.

O Plano Real trouxe o fim da inflação, vista por alguns como a camisa de força que esmagava a construção de um Brasil moderno e competitivo. Essa euforia, porém, se traduziu em oito anos de crescimento pífio. A âncora cambial levou a que o Brasil fosse mais uma nação a cair na sequência de crises das economias periféricas no fim do milênio anterior. Muitos lembraram nesse momento da frase atribuída ao ministro Mário Henrique Simonsen: a inflação aleija, mas o câmbio mata.

SÓ EM OITO DOS ÚLTIMOS 40 ANOS O BRASIL CRESCEU MAIS QUE 5%. METADE DELES FOI NO GOVERNO LULA

A ressaca da festa neoliberal provocou em grande parte da América Latina uma reação contra essas políticas. No Brasil, isso permitiu que eu, bem como milhões de brasileiros, vivenciasse os últimos quatro dos oito anos de crescimento superior a 5%. Com efeito, entre 2003 e 2010, durante o governo do presidente Lula, o Brasil finalmente conseguiu retomar a senda da prosperidade. Especialmente no seu segundo mandato, excetuando-se 2009 (o ano em que a maior crise do capitalismo desde 1930 se abateu sobre o País), o Brasil conseguiu um crescimento bastante alto e sustentado.

Mas o sucesso do Brasil não se limitava a isso: uma nova convenção de crescimento parecia estar surgindo. Por um lado, o presidente dos EUA afirmava que o líder brasileiro era “o cara”, e uma revista conservadora simbolizava o processo de mudança com uma capa na qual o Cristo Redentor decolava do Corcovado. Mas, indo além dos símbolos, as mudanças tinham dimensão real. Milhões de brasileiros saíam da pobreza graças a uma hábil combinação de políticas de rendas com expansão do emprego. O fantasma da fome foi eliminado, muitas famílias conseguiram mandar seus filhos à universidade e milhões viajaram de avião pela primeira vez.

Esse crescimento foi sustentado pela expansão do mercado interno, com forte presença do Estado. Nem tudo, porém, eram rosas: a expansão das exportações de produtos primários levou a uma valorização excessiva do real, e isso prejudicou a indústria. A participação da indústria no PIB, que tinha crescido no início do governo Lula, foi decaindo num processo que continua até hoje. Já foi dito que esse crescimento teve mais shopping centers e menos fábricas do que seria desejável, com empregos não tão bons. De todo modo, após alguns anos de recessão, não tem como não pensar que o crescimento é sempre bom, mesmo que a qualidade não seja a ideal.

Se o quadro era tão promissor, a grande questão é entender por que esse círculo virtuoso se interrompeu. Acho que a melhor analogia é um conceito que aprendi no tênis, o de “erros não forçados”, aqueles em que o jogador tem completas condições de rebater a bola, mas a manda na rede ou na arquibancada. Neste caso, o primeiro erro, no início do governo Dilma Rousseff, foi o receio injustificado com a inflação e o déficit público. A economia levou uma forte brecada em 2011 e nunca conseguiu retomar seu ritmo. Para piorar as coisas, a presidenta resolveu acreditar que o empresariado brasileiro investiria mais se a carga fiscal sobre ele fosse menor. Eles não investiram mais e ainda a culparam pelo déficit aumentado por essas mesmas isenções: o pato amarelo estava nascendo na Fiesp.

Cristina Kirchner e Dilma Rousseff foram alvos de deploráveis ataques misóginos

Nesse contexto, as “jornadas de junho” de 2013 marcaram o início do lamaçal ético e econômico no qual o Brasil ainda está afundado. Para usar uma analogia bastante conhecida, o ovo da serpente foi chocado nessa época, e a eleição de 2018 foi apenas a consequência lógica disso. O que mais marca todo esse período, a meu ver, é a raiva difusa “contra tudo isso que está aí”.

Mas o que estava aí? O avanço dos setores sempre postergados, especialmente negros e pobres, e o fato de ter uma mulher na Presidência certamente são parte da explicação, mas esse rico e trágico período não foi estudado com a profundidade necessária. Em minha interpretação, o golpe de Michel Temer, o lawfare de Sergio Moro e da República de Curitiba, a prisão do Lula e a eleição do Bolsonaro são passos concatenados na destruição do sonho de um país mais inclusivo, com Estado forte e atuante.

O fato de acompanhar a situação da Argentina e do Brasil me permite destacar uma questão pouco comentada. Nos anos 1980, falava-se muito no Brasil do “Efeito Orloff”. Isso fazia referência a uns anúncios de uma marca de vodca nos quais uma pessoa se encontrava na frente do espelho com outra versão de si mesmo, que lhe dizia: “Eu sou você amanhã”. Nesse momento, muitas coisas que ocorriam na economia argentina eram pouco depois replicadas no Brasil. O Plano Austral, adotado na Argentina em 1985, pode ser visto como uma versão prévia do Plano Cruzado (1986). A tentativa meio improvisada do Plano Primavera na Argentina em 1988 foi replicada pelo também improvisado Plano Verão no Brasil em 1989. Até, com certo exagero, houve quem encontrasse algum paralelismo entre o Plano Cavallo (1991) e o Plano Real (1994).

A ESPERANÇA ESTÁ NA RECONSTRUÇÃO DAQUELE BRASIL QUE PARECIA VIÁVEL, MAS SE DESFEZ. UMA NAÇÃO PRÓSPERA E COM JUSTIÇA SOCIAL

A comparação deixou de ser feita, o anúncio da vodca ficou na memória dos saudosistas, mas os paralelismos não se detiveram nesse momento. Nesse sentido, gostaria de comparar as manifestações de raiva contra Dilma no Brasil e contra Cristina Kirchner na Argentina. Esta foi eleita em 2007, escolhida por seu marido e anterior presidente, Néstor Kirchner, para sucedê-lo. Néstor faleceu em 2010, poucos dias antes da vitória da Dilma nas eleições. A partir daí, os ataques machistas à figura das duas presidentas adquiriram um nível baixíssimo. Os ataques “à Égua”, como os detratores de Cristina a chamam, lembram os xingamentos contra Dilma nos estádios da Copa ou os desenhos da presidenta com as pernas abertas nos tanques de gasolina, algo que nunca foi feito com Paulo Guedes ou Bolsonaro, apesar de deixarem os preços do petróleo acompanharem as variações no mercado internacional. O lawfare contra Cristina encontra paralelismos com as perseguições sofridas por Lula. Haverá algo no futuro do Brasil que possa ser comparado com a vitória de Alberto Fernández?

Nos últimos anos, infelizmente, o Brasil passou por um período muito deprimente. Obviamente, a Covid-19 tem parcela de responsabilidade, mas é claro que a resposta à doença, especialmente por parte do governo federal, contribuiu para transformar uma situação ruim em péssima. O desmonte das leis trabalhistas, as respostas insuficientes à queda dos empregos, bem como a eterna relutância em fazer políticas de renda para mitigar os efeitos da crise, reintroduziram a fome no Brasil. A indústria continua patinando, e nem as commodities melhoram os números da economia.

O Brasil começou faz alguns anos a travessia por uma ponte que o levou a um futuro horripilante. Acho que muitas pessoas estão espantadas com o que acharam. Lembrando novamente de uma analogia do Fábio Erber, a travessia do deserto por essa ponte não levou à Terra Prometida, nos deixou num deserto ainda mais inóspito. A esperança está na reconstrução daquele Brasil que parecia viável, mas se desfez. Com seus muitos problemas, continua sendo uma referência para os nossos sonhos de uma economia próspera acompanhada de justiça social. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: UFABC E VANESSA CARVALHO/BRAZIL PHOTO PRESS/AFP – LAURENCE GRIFFITHS/GETTY IMAGES/AFP E DANIEL GARCIA/AFP

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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