Guilherme Boulos

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Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Foi candidato à Presidência da República em 2018, pelo PSOL.

Opinião

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O agro e a fome

Como explicar que o agronegócio viu seu PIB crescer 8,3% em 2021, chegando a 27,4% da economia nacional, enquanto o País tem 33 milhões de famintos?

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Nesta semana, a Rede Penssan divulgou o mais recente levantamento do Instituto Vox ­Populi sobre fome e segurança alimentar no Brasil. O cenário não poderia ser mais dramático. O País tem hoje 33 milhões de famintos, o que corresponde a 15,5% da população brasileira. Em 2020, esse número era de 19 milhões, ou 9,1% da população. Antes do governo Bolsonaro, em 2018, eram 5,8%.

Se considerarmos ainda a insegurança alimentar moderada e leve, o número de brasileiros afetados sobe para inacreditáveis 125,2 milhões, ou seja, 58,7% da população nacional. A situação é mais grave entre famílias chefiadas por mulheres e por pessoas negras. E as regiões com números mais críticos são o Norte e o Nordeste. Essa última responde, sozinha, por 12 milhões de brasileiros com fome. Ironia perversa, mas a fome no campo é maior do que na cidade, atingindo 18,6% da população rural.

Temos aqui um retrato fiel da contradição brasileira. Somos o terceiro maior produtor de alimentos do planeta e nosso povo padece com o avanço devastador da fome. Como explicar que o agronegócio viu seu PIB crescer 8,3% em 2021, chegando a 27,4% da economia nacional, enquanto temos 33 milhões de famintos? Como explicar que somos o maior produtor mundial de soja e o óleo de soja puxou a inflação de alimentos no País?

É o modelo econômico, estúpido… As grandes corporações do agronegócio estão preocupadas em expandir a monocultura para exportação, explorando o solo brasileiro de forma intensiva, para vender os produtos agrícolas em dólar no mercado de commodities. O agronegócio não está preocupado em abastecer o mercado interno. E, ainda assim, tem todas as benesses, como isenção de impostos para exportação, abatimento de ICMS de agrotóxicos e ausência de fiscalização na cobrança de ITR.

Enquanto isso, os pequenos e médios produtores rurais – quem de fato abastece a mesa dos brasileiros – ficaram à míngua no governo Bolsonaro. O Pronaf teve redução na concessão de crédito e endurecimento de critérios. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) viram o orçamento secar a quase zero. Esses programas tiveram um papel decisivo nos governos de Lula e Dilma Rousseff porque atuavam nas duas pontas. De um lado, garantiam a compra de alimentos da agricultura familiar, apoiando os produtores. De outro, organizavam a distribuição nas cidades, alimentando a população mais vulnerável.  Bolsonaro fez questão de liquidá-los.

Para entender o avanço da fome no Brasil, é preciso também falar sobre o desmonte da Companhia Nacional de Abastecimento. Historicamente, a ­Conab garantiu estoques reguladores de alimentos, que permitiam intervenção nos preços de mercado em caso de safras ruins ou de especulação financeira. Se o preço do feijão subia, a Conab colocava no mercado feijão de seu estoque, impulsionando a baixa do valor. Em 2019, Bolsonaro vendeu dezenas de armazéns da companhia e desmontou a política de estoques reguladores. Justamente por isso, a inflação de alimentos dos últimos dois anos encontrou o Estado de mãos atadas.

A inflação de alimentos ainda foi potencializada pelo aumento no preço do diesel, antes mesmo da guerra na Ucrânia, resultado da desastrosa política de preços adotada pela Petrobras. A paridade com os preços internacionais dolarizou o preço dos combustíveis no Brasil, aumentando o custo do frete e corroendo o orçamento familiar dos brasileiros.

Parafraseando Darcy Ribeiro, a crise da fome no Brasil não é uma crise, é um projeto político. Bolsonaro e a agenda econômica selvagem de seu governo são responsáveis diretos por essa tragédia humanitária que atinge hoje 33 milhões de pessoas em nosso país.

A situação só não é ainda pior pela atuação dos movimentos sociais no combate à fome, do MST ao movimento negro, passando pelas Cozinhas Solidárias do MTST. Nesta semana, tive o prazer de participar da inauguração da 30ª Cozinha Solidária, em Salvador. São mais de 5 mil refeições servidas todos os dias, em comunidades periféricas espalhadas por 14 estados. Na prática, é o movimento popular, com apoio de milhares de doadores, fazendo o que o governo não faz.

A fome é o motivo mais urgente para virarmos a página do pesadelo bolsonarista. Em 2023, a prioridade número 1 de um governo popular tem de ser um plano emergencial de segurança alimentar, transformando em política pública a iniciativa dos movimentos sociais no combate à fome. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O agro e a fome “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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